Deuses e traição no Egito
Seus pés, feridos pelo calor das areias escaldantes, deixavam um rastro de sangue pelas dunas. Ele sabia que Sekhmet, a incansável deusa-leoa da punição, a arma de guerra de Rá, o seguiria onde ele fosse por seu crime de assassinar o faraó. Mas aquele homem não se entregaria, mesmo sabendo que era inútil fugir, ele ganhou o deserto onde os ventos moldam o horizonte e de onde nada retorna. O deus-sol ardia impiedosamente, vigiando sua peregrinação um falcão voava em círculos sobre seus passos. A brisa quente qual o hálito da morte trazia consigo a areia que cegava e sufocava. Atrás de seus calcanhares, surgidos de suas pegadas, escorpiões e serpentes demarcavam a passagem do traidor. As mesmas criaturas que ele usou para envenenar o leito do faraó, que condenou seu maior servo a morte nos labirintos de pedra dos subterrâneos da grande pirâmide, por conhecer demais seus segredos. O Tjati sobreviveu à armadilha e queimou todos os documentos dos escribas, trouxe a morte para a família real, envenenando e decapitando o descendente de Rá para que ele não pudesse receber a honra do embalsamento pelos sacerdotes de Anúbis. Só, talvez, Ísis em pessoa poderia restaurar seu corpo, da mesma maneira que ela fez com seu marido, Osíris, juiz dos mortos, através de magias. Para preparar o cadáver do faraó para a outra vida os embalsamadores precisariam da cabeça que o Tjati atirara no Nilo e que os crocodilos de Sobek devoraram. Ele não só arruinara a dinastia do Egito, mas também destruíra a pós-vida do faraó.
Os rugidos estavam cada vez mais próximos, logo Sekhmet o alcançaria. Suas pernas fraquejavam, as forças o abandonavam rapidamente. Cego e fraco, a voz sibilante que o guiava dizia que ele estava quase chegando, quase seguro. Não era o medo e sim o ódio que o fazia continuar caminhando. Embora todos o considerassem inquestionavelmente um traidor miserável - ele sabia que em cada lar do Egito as famílias rogavam maldições sobre seu nome - o primeiro a trair foi o faraó por temer o potencial daquele que sempre o ajudou e o admirou. E quando se sofre uma traição dessas, de quem deveria ser o exemplo para todos, tudo que se deseja é vingar-se. Não importa o preço que a mão que o reerga cobre. Somente uma mulher pedia aos deuses que poupassem a vida do Tjati, a serva de Bast, que amava o vizir e sabia que ele não era nenhum conspirador e nunca havia desejado usurpar o poder. O destino dele estava na fé dela. Bast, a deusa-gato era a única capaz de aplacar a fúria de Sekhmet, a deusa-leoa.
Enfim, chegou ao fim, ao limite. As pernas se dobraram e ao cair, ele sabia que não teria mais como se levantar. Rolou pelas areias até as margens de um oásis seco. O falcão, subitamente caiu por terra, morto. Uma tempestade de areia e fogo negro tomou o ar e engoliu Sekhmet, a confundindo, fazendo-a perder o rastro de sua presa. O exército faraônico que Sekhmet liderava enlouqueceu ante ao poder caótico e as armas que estavam destinadas ao Tjati, acabaram por derramar o sangue dos próprios guerreiros que as empunhavam. Do corpo do Tjati surgiu uma fonte de sangue que encheu todo o oásis, Sekhmet, ao descobrir onde sua caça se escondia, correu para cumprir sua missão. Porém ali, Rá não mais mantinha seu domínio. Aquelas terras esquecidas eram de um outro deus, pertencentes a um outro ser, exilado e poderoso. Sekhmet se banhou no sangue do Tjati, celebrando sua vitória, e quanto mais sangue ela bebia, mais fundo no poço ela afundava. Ébria e descontrolada, Sekhmet percebeu tarde demais a ilusão de Seth, o deus do caos, traição, do deserto, da guerra e das serpentes. O sangue, vinho e veneno, que ela se embebedava não parava de jorrar ao ponto de ameaçar afogá-la. Garras a seguravam pelas patas e a puxavam para baixo, a leoa rugia, tentando fugir. A sua força, no entanto estava comprometida devido ao veneno de Seth. Uma enorme serpente lutava contra Sekhmet e a cada golpe que a rasgava ao meio, dos pedaços a serpente se multiplicava as centenas misturando o sangue divino ao profano. Assim a batalha continuou até a leoa tombar e não restar mais nenhuma serpente. O Tjati havia recorrido ao temível deus Seth para ter sua vingança contra o faraó que o tinha sentenciado a morte. E Seth usou a vingança do Tjati para promover a destruição. Traição atrás de traição, esse ciclo continuaria irremediavelmente, Ouroboros, se não fosse Bast.
A tempestade se desfez e quando o mundo recobrou sua sanidade, o astro-rei estava sendo invadido por uma sombra. Um sol negro coroado por uma auréola de fogo reinava um novo reino. Que não era nem de Seth, nem de Rá. Nas alturas e profundezas sentiu-se um tremor, e do oásis onde o sangue de Tjati, Seth e Sekhmet se misturaram, surgiu a deusa dos gatos, Bast. A deusa se compadeceu de sua serva que rogava perdão ao seu amado e veio pessoalmente interceder por eles.
Tjati se tornou uma pantera negra, de olhos de jade e corpo mais profundo e escuro que a mais triste das noites, enquanto a serva de Bast se tornou um jaguar, de olhos cor de argila e mel. E ambos fugiram enquanto o Egito se recuperava da traição, para o coração inóspito do deserto. Onde nem deuses nem homens poderiam os alcançar.