No sexto ano de seu reinado,  Sirkah I construiu a maior  biblioteca conhecida. As ciências e as artes, todo o conhecimento, lá estavam em milhões de pergaminhos. O povo saudou alegre e também com desconfiança a idéia do rei. Alguns perguntavam, pelas ruas e praças, se não seria melhor distribuir moedas com os pobres.

 

Assim não pensava Ulthar. Desde o primeiro dia, este jovem, muito magro, pálido, de olhos vivos e brilhantes, entrou na biblioteca e não mais saiu. Passaram os anos e Ulthar continuou sua jornada, de pergaminho a pergaminho, os cabelos negros agora brancos, os olhos estreitados pelo contínuo esforço da leitura.

 

Certo dia, Zirmila, a bibliotecária – que sequer era nascida quando Ulthar lá chegou – aproximou-se e disse:

 

‘Senhor, trago más notícias. Seus pais faleceram’.

 

Ulthar ergueu os olhos do pergaminho e como se acordasse de um transe, indagou:

 

‘Que dia é hoje?’

 

‘O centésimo vigésimo quarto dia do quinto ano do reinado de Mirkhin I. ’ – informou a jovem.

 

Ulthar refletiu. O que teria acontecido com Sirkah I, o abençoado? Perguntou novamente:

 

‘E a guerra com o rei Samodeu?’

 

‘Não houve guerra, meu senhor. Celebrou-se a paz. Muitos anos atrás’ – e sentia-se na voz cristalina da moça um rasgo de inquietude e medo.

 

Ulthar refletiu. Fechou o pergaminho que lia e levantou-se, com dificuldade, o corpo magro enrijecido pelos anos de imobilidade.

 

‘Meus pais, você disse. Mortos?’

 

A moça confirmou. Ulthar olhou em volta e com lentidão dirigiu-se à saída. A jovem o acompanhou. Antes que chegassem à porta, uma forte chuva desabou, sob raios e trovoadas. Ulthar recuou. A moça tocou-lhe o braço e perguntou:

 

‘O senhor vai sair?’

 

Os olhos de Ulthar eram um poço imponderável de dúvidas, indagações, medo e tristeza. Seu corpo estremeceu e suas mãos, de dedos encurvados, depois de anos a folhearem e abrirem pergaminhos sem conta eram como garras de um velho pássaro ferido. Mas daquela melancólica figura, daquela sombra humana recortada contra a luz que vazava pela porta larga da vetusta biblioteca, uma voz firme cortou o silêncio:

 

‘Ainda não!’ – olhou para a praça em frente, para as imensas pedras do calçamento salpicadas pelos grossos pingos de chuva – ‘Daqui a pouco. Quando a chuva passar. ’.