Aquela que fazia vida

A manhã acordou e trouxe com ela uma encomenda. Um pacote grande, de papel bordado, vindo pelo correio e endereçado a ela: Maria das luzes.

O pacote era macio e trazia um cartão todo cheio de flores. Nele havia um pedido bem claro, que ela só abrisse a encomenda à noite.

Ela aceitou e entendeu. Não parecia nada surpresa, apenas serena. Entregou-se a sua costura, exatamente como fazia a milhões de anos, com delicadeza e precisão.Todos os dias, na hora combinada, com os pés na máquina e a vida bem sentada.

Para muitos, Dona Maria costurava só roupas, mesmo. Fazia tudo muito bem, e com prazer visível. E depois pegava as folhas da sua horta e fazia pratos simples, sem carne, e engolia contente.

Vivia sozinha. O marido morava na estrada e os filhos já eram gente crescida. Coisa que ela apreciava muito: ver os todos bem vestidos e abrindo idéias com seus trabalhos.

A verdade, é que ela gostava da companhia deles, mas estar sozinha era uma condição tão nova. Ah sim, morar sozinha era sua dádiva. Ria-se todinha de não lavar as louças logo depois da refeição. Se passassem horas, divertia-se mais ainda. E de ligar o som do rádio e da tv ao mesmo tempo. E fumar o cigarrinho bem devagar.

Era isso, uma irresponsabilidade bem doce. Podia, pois não era exemplo para mais ninguém. Ou nunca tinha sido, só sabia que tinha preenchido a vida, para que os filhos e marido, tivessem sempre travesseiros bem macios, roupas que moldavam a alma, coloridas ou sérias, a gosto de cada um.

Preenchia a vida deles com amor mesmo, que vinha mais com a sutileza que servia-se de vida, que com declarações e frase bonitas que ela não acreditava saber dizer.

Um prazer gostoso era olhar-se longamente, não no espelho, mas com seu próprio corpo. E amaciar sua pele, suas pequenas rugas, seus pés um pouco distantes. Espalhar-se toda de si mesma e então, tornar-se de novo: ela.

O dia inteiro pareceu deslizar, como folhas das árvores passeando pelo jardim. Fez as bainhas simples, para que a menina andasse com os próprios pés. Deu jeito em pontos sem nó, desfez problemas cometidos em doses confusas de raiva. Finalmente, deu toques de leve nas indecisões de uma senhora inovadora, porém tão insegura quanto o fim da tarde.

Então, a noite bateu em sua casa, trazida por ventos longos e amistosos.

Decidida, foi buscar o pacote de cheiro amoroso, apagou as forças da casa e fechou as portas e janelas. Preparou-se com ar terreno e começou lentamente a abrir o pacote. Pontos de luz surgiram deixando sua sala de costura com uma luz nunca antes imaginada. Como estava plena!

Sabia de seus compromissos, firmados antes mesmo que o tempo e os fazia com seriedade forte. Mas nunca deixava de sorrir com lágrimas de paixão quando era noite de costurar os pequenos furos do céu.

_ Eu gosto tanto do céu. Falava ela sozinha.