A PROCISSÃO

Todo ano, no dia de procissão de Nossa Senhora Aparecida, depois de retirar o café da manhã da mesa e lavar a louça a mulher de Serafim começava os preparativos. Com o sanduíche envolto em papel pardo dentro de sua bolsa a tiracolo, verificava os ferrolhos e fechaduras de portas e janelas, fazia as mesmas recomendações e partia.

Só então ele deixava escapar um suspiro de alívio, esfregava as mãos, soltava um assobio e retirava a gaiola do sabiá Chiquinho da viga do terraço. Fechava cuidadosamente a porta de casa e rumava para a mata.

Tinha o dia inteiro para fazer o que lhe desse na telha; pouco ou nada o afetavam as manias de sua mulher. Ela se habituara a freqüentar a casa do pároco, zelava pela sacristia e pelos santos da igreja; depois que a velhice chegara era o seu jeito de preencher a vida.

Chiquinho soltou um trinado de cumplicidade ao cruzarem a rodovia e se depararem com o denso arvoredo cortado por um manso regato. Serafim assobiou em resposta, lamentava não gostar de pescar. Embora proibida pelo guarda florestal, vez por outra encontrava um conhecido de anzol mergulhado no riacho.

Ah, se Ambrosina soubesse como aquela liberdade lhe era cara, bastava a companhia e o canto do sabiá para motivá-lo a longos passeios por onde pudesse ouvir a sinfonia maviosa dos pássaros.

Encontrava alimento em qualquer fruteira pelo caminho; desde que o papo de Chiquinho estivesse satisfeito o resto se arranjava.

E lá se foi com o dedo indicador aprisionado à alça de sua gaiola e o sabiá cada vez mais canoro.

Enquanto isso Ambrosina chegou à igreja. Cuidadosa, começou a esvaziar os jarros das flores murchas e a fazer uma boa faxina antes da hora da procissão.

Sabia quanto o velho sacristão sofria por ser obrigado a locomover-se com ajuda de muletas. As imagens dos altares, os castiçais e demais adereços sacros reluziam quando ela terminou o seu trabalho. Sorriu de satisfação, colheu flores no jardim da casa do pároco, depois poliu os bancos que deviam reluzir aos olhos de outros fiéis.

Às duas e meia da tarde a multidão comprimia-se no interior da igreja à espera da procissão. Quando os sinos tocaram as fileiras bem comportadas despontaram na praça. Atrás vieram os andores carregados por seminaristas e integrantes da ordem terceira.

Ambrosina engoliu às pressas o último naco de pão, bebeu um gole d’água na sacristia e correu para arranjar um lugar próximo ao andor de Nossa Senhora Aparecida; acreditou que a imagem da santa sorria para ela.

Pena que nenhum dos filhos aprendeu a gostar de acompanha-la à igreja, muito ao contrário, eles se divertiam com a sua “carolice”. Ao se tornarem adultos debandaram para São Paulo, apareciam em casa cada vez mais raramente.

Restou Serafim com sua mania de engaiolar passarinho, indiferente às suas ausências quando peregrinava com outras beatas nas comunidades da periferia.

Pelas ruas principais a procissão seguiu o seu curso ao som dos hinos entoados pelos fiéis e pela banda de música da cidade. A tarde chegava ao fim quando avistaram a igreja no cume da colina.

Naquele instante Ambrosina sentiu a primeira fisgada estranha dentro do peito. De fome não morreria, pensou, tivera o cuidado de alimentar-se. Elevou a voz, cantou com toda força de seus pulmões até o impacto dentro do peito silenciá-la.

Amparou-se ao braço da mulher mais próxima que acolheu o gesto com um sorriso sem notar sua extrema palidez. Antes de a procissão entrar na igreja, nova pontada prostrou-a.

Os lábios arroxearam. Cambaleou, retirou a mão devagar do braço de sua vizinha de procissão e escorregou na calçada. Enquanto os circunstantes procuravam socorrê-la, o olhar fixo na imagem de Nossa Senhora Aparecida que sumia pouco a pouco Ambrosina deixou de respirar.

Conceição Pazzola.