Bandeira

Bar no Rio de Janeiro. Vinicius de Morais sentado sozinho com um violão no colo e um copo meio cheio sobre a mesa, toca a melodia de “Para viver um grande amor”, sem cantar, toca e repete, enquanto a luz vai aumentando. Em volta vários outros freqüentadores ouvem embevecidos.

Mano (garçom, que se aproxima solícito): Lindo, Vinícius!

Vinícius: Obrigado, Maninho. Estou fazendo uma letra, vai uma prosa poética declamada entre as partes cantadas, pensei em chamá-la “Para viver um grande amor”.

Mano: Deve ser tão bom ser poeta...

Vinícius (toma um gole, pensa um pouco, e pergunta): Você também queria ser poeta, Maninho?

Mano: Que é isso, Vininha. Eu não tenho jeito pra essas coisas.

Vinícius: Mas você é um poeta que sabe rimar drinques e aperitivos como ninguém.

Mano (rindo): Você quer mais alguma coisa, poetinha?

Vinícius: Me traz outro uísque, Maninho.

Vinícius volta a dedilhar o violão enquanto o garçom vai buscar a bebida. Dois rapazes e duas moças entram no bar. Ao vê-lo se entusiasmam, falam sem parar e apontam para ele, até que uma delas toma coragem e se aproxima.

Irene: Poetinha! Mas é você mesmo.

Vinícius: Mas é claro, meu amorzinho.

Irene (apontando a si mesma e aos outros): Nós somos seus fãs número um!

Vinícius: Devem ser o número um, dois, três e quatro, certo? Vocês querem tomar uma bebidinha comigo?

Irene: Queremos!

Mário: É claro.

Carolina: Que gracinha!

Januário: Com prazer.

Vinícius: Maninho! Traga alguns drinques para os meus amigos.

Mano: Com todo prazer.

Carolina: O que você está compondo, poetinha?

Vinícius: Uma musiquinha de amor.

Irene: Você sabia que eu também sou poeta?

Vinícius: Eu sabia que você é linda. Como é o seu nome?

Irene (rindo): Irene!

Vinícius: E o seu nome é lindo também. Seu pai deve gostar de poesia.

Irene: Claro! Aposto que você conhece os versos de onde ele tirou o meu nome.

Vinícius: Irene é paz em grego. Conheço, conheço sim. O mais comovente poeta que o Brasil já teve. Seu pai gosta de Bandeira?

Irene: Bandeira? Ele disse que se inspirou numa canção de Caetano Veloso que diz assim (canta): “Quero ver Irene dar sua risada”.

Vinícius: Ah! O Caetaninho, outro grande poeta.

Januário: O senhor não estava falando dele?

Vinícius: Amigo, por favor, me chame de você.

Januário: Tá jóia.

Vinícius: Eu estava me lembrando de Manuelzinho, o Bandeirinha, o Manuel Bandeira, aliás, vejam que nome elegante, Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho. E ainda mais que hoje é 19 de abril, data do nascimento do poeta, e eu me lembrei dele quando acordei.

Mário: Ele está fazendo aniversário hoje?

Vinícius: Estaria, se estivesse vivo, mas ele faleceu no ano de 1968.

Mário: Tanto tempo assim! Ele é do tempo do onça.

Vinícius: Vocês são muito jovens ainda. O tempo não se mede por números, vocês ainda vão aprender isso.

Irene: E quando foi que ele nasceu, Vininha?

Mano entra com uma bandeja cheia de copos e serve a todos. Ao perceber que uma história está sendo contada senta-se discretamente por ali e fica ouvindo também.

Vinícius: Manuel Bandeira nasceu em 1886, no Recife.

Moças: Ah!

Irene (curiosa): E como são os versos que ele fez com o meu nome?

Vinícius (começa junto com Manuel Bandeira): “Irene preta/Irene boa”...

Manuel Bandeira (em outro espaço do palco):

Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:

 Licença, meu branco!

E São Pedro bonachão:

 Entra, Irene. Você não preciso pedir licença.

As moças aplaudem, Bandeira agradece, tosse e sai.

Vinícius: Então você é poeta, se chama Irene. E seus amigos?

Mário: Mário. Sou terapeuta.

Januário: Januário. Faço comunicação.

Carolina: Meu nome é Carolina e estudo teatro.

Vinícius: Muito prazer.

As moças: O prazer é nosso.

Irene: Poeta ou poetiza?

Vinícius: É melhor dizer poeta, todos são poetas, homens e mulheres. É como escreveu a minha querida amiga Cecília Meireles: “Não sou alegre nem sou triste/Sou poeta”.

Carolina: Fala mais sobre o Bandeira... fiquei curiosa. Ele então morava no Nordeste?

Vinícius: Morou no Recife, em Pernambuco, sua terra natal, entre os seis os dez anos de idade. Foi a melhor época de sua infância, da qual guardava as mais fortes memórias, e sobre a qual escreveu lindos poemas. Depois sua família se mudou para o Rio, e ele morou em Laranjeiras. Quando adulto ele passou uma boa temporada residindo na Lapa. Eu até fiz um poema em homenagem a ele, que fala sobre isso, “Lapa de Bandeira”. É assim:

Existia, e ainda existe

Um certo beco na Lapa

Onde assista, não assiste

Um poeta no fundo triste

No alto de um apartamento

Como no alto de uma escarpa.

Em dias de minha vida

Em que me levava o vento

Como uma nave ferida

No cimo da escarpa erguida

Eu via uma luz discreta

Acender serenamente.

Era a ilha da amizade

Era o espírito do poeta

A buscar pela cidade

Minha louca mocidade

Como uma nave ferida

Perambulando patética.

E eu ia e ascensionava

A grande espiral erguida

Onde o poeta me aguardava

E onde tudo me guardava

Contra a angústia do vazio

Que embaixo me consumia.

Um simples apartamento

Num pobre beco sombrio

Na Lapa, junto ao convento...

Porém, no meu pensamento

Era o farol da poesia

Brilhando serenamente.

Mário: Que bonito!

Carolina: Impressionante! Os poetas sentem o mundo muito maior, muito mais fundo, com muito mais força e cheio de cores. E ao mesmo tempo sentem mais a tristeza.

Januário: E a alegria.

Irene: Vocês dois foram muito amigos?

Vinícius: Muito. Eu sinto como uma corrente. Vou te contar uma história. Um dia, quando Manuel Bandeira tinha uns doze anos, encontrou em um bonde com o nosso genial romancista Machado de Assis. Bandeira era aluno do Externato Ginásio Nacional, que depois ganhou o nome de Colégio Pedro II, onde ele mais tarde seria professor de literatura. Lá ele tinha um professor chamado Silva Ramos que o fez gostar de Camões, e Manuel sabia de cor muitas passagens de Os Lusíadas. Foi sobre isso que conversou com Machado, recitou para ele, e até lembrou de uma oitava que o velho mestre estava tentando recordar. Eu sinto que a poesia é uma corrente. Camões, Machado, Bandeira, eu... e agora encontro vocês. Quem sabe quantos poetas novos não sairão daqui desta mesa?

Silêncio. Manuel Bandeira reaparece no fundo do palco, e declama.

Bandeira:

Sou bem-nascido. Menino

Fui como os demais, feliz.

Depois, veio o mau destino

E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,

Rompeu em meu coração,

Levou tudo de vencida,

Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó 

Ah, que dor!

Magoado e só,

 Só!  meu coração ardeu.

Ardeu em gritos dementes

Na sua paixão sombria...

E dessas horas ardentes

Ficou esta cinza fria.

 Esta pouca cinza fria...

Todos ouvem sem falar nada, e nem aplaudem depois.

Irene: Sabe, parece que estou sentindo o Manuel Bandeira vivo, aqui, agora, presente entre nós.

Manuel Bandeira caminha até perto deles e se senta a uma mesa do bar e é servido por Mano.De vez em quando tosse ao longo da peça.

Mário: Por que ele faz poemas tão tristes?

Vinícius: Bandeira fez seu curso básico e depois foi para São Paulo, para cursar arquitetura na Escola Politécnica, seu sonho era ser arquiteto, e este era também o grande desejo de seu pai. Mas aos dezoito anos ele teve tuberculose, uma doença que na época era mortal e não tinha cura. Manuel Bandeira ficou muito desiludido, não podia mais trabalhar nem estudar, e passou a mudar de cidade em cidade, procurando algum clima favorável para o seu tratamento. Nesse período viveu na Suíça, num sanatório para tísicos, onde conheceu o poeta Paul Éluard, que também estava se tratando lá, e este lhe mostra muitos poetas novos e o influenciou bastante, pelo contato com o modernismo europeu.

Mário: Mas ele não morreu novo.

Vinícius: Não. Contrariando todos os prognósticos dos médicos, Manuel Bandeira viveu até os oitenta e dois anos de idade. Mas a doença lhe impediu de fazer muitas coisas que queria, o marcou pela tristeza e pela sensação de abandono e inutilidade.

Carolina: E no entanto ele conseguiu dizer tudo, tudo, com a voz da poesia.

Januário (debochando): E como é a voz da poesia, Carolina, grossa ou fina?

Irene: Você não consegue ouvir?

Bandeira tosse em sua mesa. A Poesia entra no palco e declama.

Poesia:

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:

 Diga trinta e três.

 Trinta e três... trinta e três... trinta e três...

 Respire.

...............................................................

 O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

 Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

 Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Irene: Eu ouço muito bem.

Carolina: Claro.

Mário: Até os surdos podem ouvir.

Vinícius: O Januário está ouvindo também, tenho certeza.

Januário: Estou.

Poesia:

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:

Laocoonte constrangido pelas serpentes,

Ugolino e os filhos esfaimados.

Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...

Era enorme, mesmo para esta terra de ferocidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.

O cacto tombou atravessado na rua.

Quebrou os beirais do casario fronteiriço,

Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,

Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade de iluminação e energia:

 Era belo, áspero, intratável.

Vinícius: Bandeira renovou a língua da poesia brasileira, trazendo pra ela mais vida, mais calor, ficou um idioma mais simples, mais doce, e ao mesmo tempo mais pungente.

Januário: Eu já tinha lido outros poetas e não entendi o que eles escreveram. Mas o que o Manuel Bandeira diz eu entendo, tudo, entendo até o que não entendo.

Vinícius: Foi por isso que ele foi um dos maiores responsáveis pela Semana de Arte Moderna de 22, mesmo não tendo participado pessoalmente dela. Porém ele inspirou o movimento, foi o seu João Batista, como disse o seu amigo e também grande poeta Mário de Andrade, que gostava de chamar o Manuel Bandeira de Manu.

Irene: Quem foi o maior amigo do Bandeira, poetinha, você ou o Mário?

Vinícius: Nenhum dos dois. O maior amigo, o mais querido, e o mais admirado por ele como poeta foi Carlos Drummond de Andrade. Mas o Bandeira era um sujeito muito cordial e afável, foi amigo de muitos outros escritores e artistas, e de muito mais gente ainda que não era poeta, e que gostava dele.

Mano: Nisso é que o Vininha se parece mais com o Manuel Bandeira. É o poeta da amizade. Foi o nosso poetinha aqui que disse que “a vida é a arte do encontro”.

Carolina: Vinícius, você fez alguma música com o Manuel Bandeira?

Vinícius: Não tive essa oportunidade, mas vários grandes compositores musicaram poemas de Manuel Bandeira, como Ari Barroso...

Irene: Canta! Canta pra nós! Como se chama essa parceria?

Vinícius: “Portugal, meu avozinho”. É linda.

Irene: Canta, Vininha. Eu sou fã do Ari Barroso.

Vinícius (toca, canta e é acompanhado pelo coro dos freqüentadores do bar):

Como foi que temperaste,

Portugal, meu avozinho,

Esse gosto misturado

De saudade e de carinho?

Esse gosto misturado

De pele branca e trigueira,

 Gosto de África e de Europa,

Que é o da gente brasileira?

Gosto de samba e de fado,

Portugal, meu avozinho,

Ai Portugal que ensinaste

Ao Brasil o teu carinho!

Tu de um lado, e de outro lado

Nós... No meio o mar profundo...

Mas, por mais fundo que seja,

Somos os dois um só mundo.

Grande mundo de ternura,

Feito de três continentes...

Ai mundo de Portugal,

Gente mãe de tantas gentes!

Ai Portugal de Camões,

Do bom trigo e do bom vinho,

Que nos deste, ai avozinho,

Este gosto misturado,

Que é saudade e que é carinho!

Carolina: Quem mais musicou o Manu?

Vinícius: Muitos, muitos... Camargo Guarniere, Francisco Mignone, Villa-Lobos, Chico Buarque, Paulinho Diniz, Vieira Brandão, Jaime Ovalle... muita gente mesmo. Sabia que ele fez um poema chamado “Resposta a Vinícius”?

Mário: E como é?

Vinícius: É assim:

Manuel Bandeira:

Poeta sou; pai, pouco, irmão, mais.

Lúcido sim; eleito, não.

E bem triste de tantos ais

Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.

Talvez com me bastar, feliz

 Ah feliz como jamais fui! ,

Arrancando do coração

 Arrancando pela raiz 

Este anseio infinito e vão

De possuir o que me possui.

Irene (dengosa): Canta outra canção do Manu, poetinha...

Vinícius: Vou mostrar pra vocês uma muito engraçada, que parece um trem antigo se locomovendo, e que se chama mesmo “Trem de Ferro”.

Café com pão

Café com pão

Café com pão

Virge Maria que foi isto maquinista?

Agora sim

Café com pão

Agora sim

Voa, fumaça

Corre, cerca

Ai seu foguista

Bota fogo

Na fornalha

Que eu preciso

Muita força

Muita força

Muita força

Oô...

Foge, bicho

Foge, povo

Passa ponte

Passa poste

Passa pasto

Passa boi

Passa boiada

Passa galho

De ingazeira

Debruçada

No riacho

Que vontade

De cantar!

Ohô...

Quando me prenderam

No canaviá

Cada pé de cana

Era u oficia

Oô...

Menina bonita

Do vestido verde

Me dá tua boca

Pra mata minha sede

Oô...

Vou mimbora vou mimbora

Não gosto daqui

Nasci no sertão

Sou de Ouricuri

Oô...

Vou depressa

Vou correndo

Vou na toda

Que só levo

Pouca gente

Pouca gente

Pouca gente...

Irene: Que coisa engraçada!

Vinícius: Mais ainda é este aqui, chamado “Berimbau” (canta):

Os aguapós dos aguaçais

Nos igapós dos Japurás

Bolem, bolem, bolem.

Chama o saci:  Si si si si!

 Ui ui ui ui ui! uiva a iara

Nos aguaçais dos igapós

Dos Japurás e dos Purus.

A mameluca é uma maluca.

Saiu sozinha da maloca 

O boto bate  bite bite...

Quem ofendeu a mameluca?

 Foi o boto!

O Cussaruim bota quebrantos.

Nos aguaçais os aguapós

 Cruz, canhoto! 

Bolem... Peraus dos Japurás

De assombramentos e de espantos!...

Carolina: Fala sobre você também, poetinha.

Vinícius: Hoje é dia de Bandeira, menininha. Da outra vez eu conto mais sobre mim.

Irene: Achei interessante que tem todo um trabalho com os sonhos das palavras.

Mário: Sonhos!?

Irene: Eu quis dizer sons das palavras.

Vinícius: Disse bem.

Irene: Sonhos.

Poesia:

a onda anda

aonde anda

a onda?

a onda ainda

ainda onda

ainda anda

aonde?

aonde?

a onda a onda

Irene: Que ouvido de tísico ele tinha! O Bandeirinha também era músico?

Vinícius: Todo poeta é músico por definição. Mas ele não fazia melodias de notas, dó ré mi fa sol lá si, ele fazia melodias de sons de palavras e de tons de sentimentos.

Carolina: E ele nunca foi arquiteto?

Vinícius: Queria, mas ficou no querer. Foi poeta, escritor, fez crônicas para a imprensa e muitas traduções de poemas e peças de teatro. Também foi professor do Colégio Pedro II e depois de literatura da Faculdade Nacional de Filosofia.

Irene: E não teve filhos?

Vinícius: Devido a sua doença ele nem se casou, nem teve filhos e nem fez um monte de outras coisas que queria.

Poesia:

Belo belo minha bela

Tenho tudo que não quero

Não tenho nada que quero

Não quero óculos nem tosse

Nem obrigação de voto

Quero quero

Quero a solidão dos píncaros

A água da fonte escondida

A rosa que floresceu

Sobre a escarpa inacessível

A luz da primeira estrela

Piscando no lusco-fusco

Quero quero

Quero dar a volta ao mundo

Só num navio de vela

Quero rever Pernambuco

Quero ver Bagdá e Cusco

Quero quero

Quero o moreno de Estela

Quero a brancura de Elisa

Quero a saliva de Bela

Quero as sardas de Adalgisa

Quero quero tanta coisa

Belo belo

Mas basta de lero-lero

Vida noves fora zero.

Manuel Bandeira:

Belo belo belo,

Tenho tudo quanto quero,

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.

E o risco brevíssimo  que foi? Passou!  de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,

E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro

Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,

Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.

Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:

Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,

Não quero ser amado,

Não quero combater,

Não quero ser soldado.

 Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

Vinícius: Manuel Bandeira trouxe os temas comuns e os sentimentos mais simples para a poesia. Ele criticava a estética ultrapassada, dos que faziam poemas duros e pré-estabelecidos como jóias lapidadas, do tipo parnasianos e congêneres. Seu poema “Os sapos” foi lido e muito vaiado na Semana de Arte Moderna de 1922 (ele mandou o poema, mas não quis ir ele mesmo ao evento). É assim:

Enfunando os papos.

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,

Berra o sapo-boi:

 “Meu pai foi à guerra!”

 “Não foi!”  “Foi!”  “Não foi!”

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz:  “Meu cancioneiro

É bem martelado.”

Vinícius: E vai por aí. No final aparece o símbolo do poeta genuíno:

Longe dessa grita,

Lá onde mais densa

A noite infinita

Verte a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,

Sem glória, sem fé,

No perau profundo

E solitário, é

Que soluças tu,

Tremendo de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio...

Carolina: Uma vez na escola a professora leu prà gente um poema dele chamado “Pasárgada”...

Vinícius: “Vou-se embora pra Pasárgada”.

Carolina: ...e eu não entendi nada! O que ele quis dizer com isso?

Manuel Bandeira: “Foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra. Vi pela primeira vez esse nome Pasárgada (que significa ‘campo dos persas’ ou ‘tesouro dos persas’, e que suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias) quando tinha os meus dezesseis anos e foi num autor grego. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo de doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: ‘Vou-me embora p’ra Pasárgada!’ Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo, mas fracassei. Já nesse tempo eu não forçava a mão. Abandonei a idéia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da ‘vida besta’. Desta vez o poema saiu sem esforço, como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adolescência  essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e não como imperfeita neste mundo de aparências, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a ‘minha’ Pasárgada.”

Carolina: Eu ainda me lembro do poema. É assim:

Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada.

Vou-me embora pra Pasárgada

Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura

De tal modo inconseqüente

Que Joana a Louca de Espanha

Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente

Da nora que nunca tive

E como farei ginástica

Andarei de bicicleta

Montarei em burro brabo

Subirei em pau-de-sebo

Tomarei banhos de mar!

E quando estiver cansado

Mando chamar a mãe-d’água

Pra me contar as histórias

Que no tempo de eu menino

Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo

É outra civilização

Tem um processo seguro

De impedir a concepção

Tem telefone automático

Tem alcalóide à vontade

Tem prostitutas bonitas

Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste

Mas triste de não ter jeito

Quando de noite me der

Vontade de me matar

 Lá sou amigo do rei 

Terei a mulher que eu quero

Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vinícius: “O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero locubrador de versos.” Palavras de Vinícius de Morais, “Sobre poesia”.

Manuel Bandeira:

Os poucos versos que aí vão,

Em lugar de outros é que os ponho.

Tu que me lês, deixo ao teu sonho

Imaginar como serão.

Neles porás tua tristeza

Ou bem teu júbilo, e, talvez,

Lhes acharás, tu que me lês,

Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu não os amou.

Meus pobres versos comovidos!

Por isso fiquem esquecidos

Onde o mau vento os atirou.

Poesia:

O Bicho

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Irene:

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito,

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma nódoa de lama:

É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade.

Vinícius: Meus versos preferidos de Bandeira são assim:

Beijo pouco, falo menos ainda.

Mas invento palavras

Que traduzem a ternura mais funda

E mais cotidiana.

Manuel Bandeira: São lindos, mesmo.

Irene: Ué! Mas este aqui, que aos poucos aparece entre nós, e que se parece tanto com o bardo, com o vate, com o poeta, o nosso poetinha, o nosso amado Manuel, a nossa Bandeira de poesia e amor, ele é ou não é o Bandeira, o Manuel, o Manuel Bandeira?

Vinícius: Ele é e não é o Manuel. Porque isto aqui é arte, e a arte é uma outra realidade. Porque o poeta é fingidor, como disse Fernando Pessoa, mas o que o poeta finge é a verdade. Todos nós somos Manuel Bandeira, porque agora ele faz parte de nós, está em nossas almas, em nossos corações.

Carolina: Todos nós quem? Todos os poetas? Todos os jovens? Todos os alunos do Colégio que traz o seu nome?

Vinícius: Todos os brasileiros.

Manuel Bandeira: Todos os seres humanos.

Vinícius: Fulano (diz o nome do ator que faz o papel de Manuel), qual o seu poema preferido de Manuel Bandeira?

Manuel Bandeira: “Estrela da Manhã”.

Vinícius: E como ele é? Fale pra nós.

Manuel Bandeira:

Eu quero a estrela da manhã

Onde anda a estrela da manhã?

Meus amigos meus inimigos

Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua

Desapareceu com quem?

Procurem por toda parte

Digam que sou um homem sem orgulho

Um homem que aceita tudo

Que me importa?

Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites

Fui assassino e suicida

Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada

Atribuladora dos aflitos

Girafa de duas cabeças

Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros

Pecai com os sargentos

Pecai com os fuzileiros navais

Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos

Com o padre e com o sacristão

Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples

Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte

Pura ou degradada até a última baixeza

Eu quero a estrela da manhã.

Irene: Então, se ele é um ator, se isto é uma peça, se história de Bandeira foi contada, e se agora nós conhecemos um pouco de sua funda poesia, o que mais é preciso dizer ou fazer?

Vinícius: Acho que é bom cantar, para a peça acabar de uma forma feliz, como começou. Vamos todos cantar juntos estes versinhos que fiz com música do Toquinho, esta canção que se chama “Para viver um grande amor”.

Irene: Mas então é preciso que a platéia toda cante também.

Vinícius: Vamos todos cantar.

Todos: Eu não ando só

Só ando em boa companhia

Com meu violão

Minha canção e a poesia

Luis Carlos de Morais Junior
Enviado por Luis Carlos de Morais Junior em 07/10/2008
Reeditado em 12/10/2016
Código do texto: T1216284
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