Regresso:

Category: Books

Genre: Literature & Fiction

Author: Léa Ferro

- O Fado:

É engraçado como os dias amanhecem todos iguais, mesmo quando amanhecem diferentes. Como esta manhã simplista de sol, por exemplo, porque ontem amanheceu nublado e até ameaçou chover, à tarde as nuvens pegaram carona no vento e foram embora para outro mar, regressando somente após o adormecer do sol e a noite, ah a noite teve um singelo eclipse sonhador que sobreviveu às nuvens, vinho tinto lá da minha terra, que fazia muito tempo que eu não bebia, e canções ofertadas por um par de olhos tristonhos.

Um fado, uma mulher, uma guitarra, uma melancolia. É mais ou menos nisto que se resume o amor. O amor dos dramáticos, digo.

A manhã de hoje tinha por obrigação em despertar diferente, mas a mulher vestida de seda e de cabelos curtos resolveu cantar com tanta dor, que até conseguiu atravessar a minha. Os dias não são diferentes, são todos iguais e continuam a transportar-me para as portas do inferno.

Ah o inferno... É o fim de quem ama, é a saga dos apaixonados, é à sombra da perda... Mas quem perde um amor, livra-se do inferno, porque sofre tanto e tão completamente que quando se desprende, nem tem mais créditos para acertar com o diabo. Perder um grande amor é quitar-se até mesmo com Deus, inda que seja um pecador.

- Meu fado meu:

Porque o fado deixou apenas de ser fado, para ser meu. Completamente meu. Não que eu seja um ser egoísta, não é disto que se trata, mas cada letrinha que compõe a canção chega pelas beiradas e me arrebata de emoção. Eu choro, mas eu também sorrio, sorrisos brejeiros da enganação. É preciso sorrir e poupar os olhos do pai. Tantas vezes ele me disse que o amor e a morte são iguais, não sei por que não entendi, agora eu tenho que conviver com ambos no mais absoluto silêncio, o problema é que não sei silenciar de todo e meus olhos estão sempre diluviando.

- Da perda:

Restaram sertões inteiros dentro de mim, cactos que me ferem, pedras que não criam limo, a seca que mata o gado e a relva do meu coração, o solo árido que não cria vida nem sustenta mais o verde dos meus olhos tristes, raízes de baobá tentando sobreviver ao sol, folhas secas que se acumulam em minha alma empoeirada das desilusões vividas.

- Esquecimento:

Eu sempre me lembro que me esqueci de te esquecer.

- Dias iguais:

Os dias continuam iguais: - ano novo, vida velha, amor igual.

Precisava renascer e descobrir todas as coisas, igual criança que se surpreende até mesmo com a descoberta das próprias mãos. Mas viver é necessário e a realidade se torna absoluta a cada dia. Ainda mais agora, que uma canção remeteu-me ao passado que eu acreditava ter adormecido, enganei-me por tanto tempo que não me dei conta que a dor morava numa camada fina da minha pele e sobre a luz do sol tudo arde com maior facilidade.

Eu regresso a dor, como o bom filho que a casa torna. Talvez os bons filhos sejam aqueles que não foram embora.

Sinto saudade como quem sente sede. Não beberei água de amor, porque o amor há muito tempo me deixou e esqueceu-se de deixar o manual de instrução da vida sem os olhos dela. Benditos olhos da mulher amada que iluminavam noites inteiras sem lua. Não. Não era preciso o brilho da lua, porque seu olhar embriagava a todo e qualquer contentamento. Tento reescrever os dias e as regras, mas as linhas ficaram tortas e eu não sou Deus que escreve certo nas linhas tortas.

- Amar:

Ora, se o amor não é mesmo uma desgraça!

O amor é como o vendaval que destrói as paredes da vida e deixa no caminho as Drumonianas eternas. Não vou mais chutá-las, talvez eu construa o castelo de Pessoa ou as atire de volta em quem me faz doer, dependerá do meu humor.

Há pedras por todos os lados. Cada passo é um tropeço maior, inda que se guardem as fotografias no baú das lembranças, há uma hora que o baú se abre e nos coloca diante todas as verdades imperfeitas. Amores que se vão, amigos que partem, dores que permanecem...

Amor é fogo que arde sem se ver?

Amor é vento frio, selvageria que arrebata, mutila, enlouquece... Amor é inverno secreto que faz morada na alma, é dia de chuva quando se tem vontade de sol, é café frio e amargo numa manhã de segunda-feira, amor não é fogo e a gente vê.

- Canção:

Canção é sempre um presente universal, toda a gente gosta de música, em todos os lugares do mundo... Há sempre alguém de radinho ligado acompanhando a letra, mesmo quando é outro idioma que revela os sentimentos, nos confins do universo é bem capaz, de neste exato momento, ter alguém ouvindo uma canção que lhe lembra algo. Geralmente as canções nos remetem a momentos tristes.

Mas o que era para ser apenas um presente, trouxe para os meus dias iguais todas as lembranças de amor.

“...Dançava gentilmente numa noite de verão, tinha nas mãos um cigarro, na outra uma taça de vinho, as ancas a bailar docemente e um riso feliz nos lábios. Por vezes a gargalhada ecoa pelo pequeno salão e os olhares direcionavam-se todos em direção ao som inebriante da alegria. Eu? Sorria de volta orgulhosa da mulher gentil que animava as noites e encantava os desconhecidos...”

Ah os desconhecidos, eu não sabia o quanto eles eram perigosos...

- Saudade:

Preciso deixar de sentir saudades! ...Ou morrerei jovem. Não desejo morrer jovem, outra vez.

- Borboleta:

Fiz o processo inverso da vida... Já fui borboleta, já fui colorida, já soube voar, já me alimentei das flores do campo. Agora sou lagarta, no casulo, do silêncio, de uma dor que não se acaba. Ora, se não é perigoso viver, mas não viver é lamentável. Preciso de uma cartilha ilustrada: como sair do casulo em três passos.

- Sonhos:

Não me canso de ter esperanças. Quer dizer, às vezes me canso sim, é verdade, mas então a música vem e diz dos sonhos, que os sonhos de alguém são parecidos, que se pode viver dos mesmos prazeres e dores, misturar tudo para amenizar, adaptar e ousar viver. Me pergunto se os sonhos são possíveis e Cazuza chega cantando “Azul e Amarelo”.

Já me disseram que sonhar é para os poetas, tentei contestar, mas eu perdi. Sonhar é mesmo uma obra imperfeita dos poetas líricos e românticos. Talvez eu devesse ter nascido poeta e sonhar sem receios das horas que passam, dos anos que se acumulam, das décadas que me embranquecem os cabelos.

“Sonhos são pedaços que não conseguimos mais unir e os meus sonhos moram nas nuvens que espiam de longe o mar.”

- Regresso:

Voltar para casa é mergulhar no passado, como pedra atirada ao fundo do mar. Eu dou de cara com as coisas que fiz de certo, as que fiz de errado, as que deixei de fazer. Meu regresso consiste em suportar-me, primeiramente. Encaro agora uma seqüência datilografada na lista que perdi no atropelo dos dias.

Primeiro sacudir a poeira dos olhos, depois molhar a alma no choro silenciado, depois abrir a janela e deixar o sol entrar, depois caminhar para então aprender a correr; ou dou de cara com as Drumonianas novamente, depois navegar num mar de ondas tranqüilas, depois o depois... Porque o depois nunca é agora.

Regressar é estar diante os fantasmas do passado sem nem mesmo saber exorcizá-los.

Um fado me regressa de maneira terna, a voz, a guitarra, o olhar... Melancolicamente, somos idênticos, não apenas pela harmonia musical como pela poesia das palavras. Cada uma dela lê meus olhos e rabisca versos em mim, tatua a minha vida e eu tenho tatuado na pele a palavra “amor”, sem nem mesmo mais acreditar no amor.

- Vinho:

Mais uma garrafa solitária de vinho e eu estarei confundindo Leminski com Dostoiévski.

- Pensamentos Imaginários:

Cactos: - É bem provável que quando a água termine de fato, o solo árido se escame e endureça os espinhos. Há sertões que se manifestam de maneira silenciosa e traiçoeira invadindo as manhãs como se fossem donos do território moldado a mãos, mas não são. É preciso dizer aos sertões que se retirem e levem seus cactos, suas pedras, seus troncos, sua poeira, para bem longe, embora quase nunca eles nos ouçam. Os sertões são surdos. Os sertões aniquilam a água da sede insana de vida e nos causam imenso furor. Cactos ferem sem olhar a quem, as plantações doem, a água é ouro e somos todos pobres. O rastelo que crava na terra seca é igual ao que arranha o peito sertanejo. A dor é inevitável, vê-se na face carrancuda marcada do sol agreste, que as ilusões se perderam na última tempestade de areia.

"Para onde foi o mar que banhava em pôr-do-sol o pensamento imaginário?"

Léa Ferro. SP. 05 de Março de 2008.

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Léa Ferro
Enviado por Léa Ferro em 28/09/2008
Código do texto: T1200955
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