Barulhinho bom.
Category: Books
Genre: Literature & Fiction
Author: Léa Ferro
- Silêncio:
Noite fria, quase outro dia, inda que permanecesse a escuridão da madrugada regada a poemas, vinho e saudade, o relógio na parede da sala caminhava lentamente rumo à despedida daquele dia tristonho. Em algumas horas a manhã estaria iluminando o céu, mas Maria não sentia vontade de ver o sol. Não. O sol lhe trazia lembranças dos dias bonitos ao lado de sua bem amada e lembranças aumentavam a saudade que lhe consumia em tempo integral. - A saudade nunca manda aviso, ela simplesmente chega e se instala sem perguntar se é bem-vinda não.
Em silêncio ajeitava os óculos na ponta do nariz e tentava concentrar-se na leitura para a tarde seguinte. Não tinha sono, mesmo com o leve efeito etílico não conseguia dormir. Gostava das noites, era uma boêmia incurável que se encantava todas as vezes que seus olhos deparavam-se com o luar, como se a visse sempre pela primeira vez. Era capaz de ficar horas olhando para a lua. Adorava dormir nas manhãs fossem elas frias ou quentes. Jogava-se na cama qual criança no colo da mãe como se o mundo lá fora não existisse e sentia-se protegida no aconchego do seu lar.
- Vazio:
Olhava a poltrona ao lado vazia no canto da sala, recordando quantas vezes estiveram ali, lado a lado, com um livro numa mão e a taça de vinho na outra. As gargalhadas ecoavam pela casa, sempre que o vinho vencia a leitura e terminavam fazendo amor.
Maria sempre soube ler os olhos da amada e enxergar os poemas que surgiam de sua alma e caminhavam até a boca, entre goles de vinho e beijos ardentes. Sabia quando ela queria abandonar tudo para ser despida por mãos vorazes e entregar-se sem pudor. Bastava olhar sua expressão para perceber que as chamas crépidas como lareira das noites invernais a consumiam.
- Desejos:
A saudade apertava o peito, machucava as mãos e agora a poltrona ao lado estava vazia do sussurro de desejos da bem amada. Faziam amor de formas diferentes e novas. Às vezes faziam amor às gargalhadas altas e divertidas, Maria era engraçada e adorava vê-la rir daquele jeito escandaloso e gostoso, enchia-lhe a alma quando o silêncio era quebrado por aquela risada, outras vezes eram arrebatadas por uma paixão tão latente, que faziam amor em silêncio e com pressa, o único som que habitava o ambiente eram os gemidos desesperados e sussurros de uma respiração ofegante em busca do prazer, tamanha a fome, mas as vezes, faziam amor sem pressa e tocavam cada parte do corpo da outra com a alma cheia de vida, beijavam, mordiam, aranhavam entre palavras ternas e olhares em cumplicidade e nem sentiam a noite passar.
Mas naquela hora a poltrona estava vazia, sua vida estava vazia, a canção roubava a serenidade do seu rosto e as mãos não amparavam o corpo trêmulo da bem amada. Maria tentava driblar a noite que se fazia solitária, mas tudo a levava aos momentos de partilha. Era uma devota, incorrigível, escrevia toda manhã um poema para aqueles olhos de lua, levava-lhe o café da manhã na cama só para ter o prazer de vê-la despertar com os cabelos bagunçados e o sorriso preguiçoso.
- Canção:
“Não vejo mais você faz tanto tempo / que saudade que eu sinto / de olhar em seus olhos, ganhar seus abraços / é verdade eu não minto / e neste desespero em que me vejo / já cheguei a tal ponto / de me trocar diversas vezes por você / só pra ver se eu me encontro...”
O silêncio era quebrado pela voz melodiosa enchendo seu coração de dor. Maria suspirava profundamente e desejava poder estar numa máquina do tempo para ter a bem amada ao seu lado mais uma vez. Pensava em como seria bom vê-la sorrindo nas manhãs de sábado lendo o jornal na varanda, enquanto Maria regava as plantas e alimentava os gatinhos, ela sempre olhava de canto de olho para Maria e achava graça do seu jeitinho avoado e divertido a conversar com as plantas e com os bichos. Bastava um passarinho dar o ar da graça no quintal para Maria sair logo correndo com a filmadora na mão qual menina a brincar de esconde-esconde. Pé ante pé, enfurnava-se em meios as plantas para filmá-los e depois sair correndo toda esbaforida a mostrar. A bem amada ria loucuras do seu jeito trapalhão.
Não entendia porque ela tinha ido embora.
“Porque fostes embora, se parecias estar tão feliz?” Pensava ao levar a taça de vinho aos lábios mais uma vez.
- Solidão:
A madrugada chegava trazendo a chuva forte que parecia ter sede de terra tamanha voracidade ao cair no solo. No céu, a lua já se escondia atrás das nuvens que se chocavam fazendo a negritude ser violada pelos raios longínquos. Adora as noites de chuva, por serem as preferidas da bem amada, dançavam ao som de Caetano, Marisa Monte e Luis Represas, liam Camões, Drummond e Quintana, recitavam os poemas que mais agradava.
Barulhinho bom, a chuva trazia. Molhava a poeira da alma e refrescava o silêncio. Adorava a chuva, mesmo que esta ação da natureza escondesse a lua por detrás das nuvens, era um dos melhores momentos da sua vida, sentir o cheiro de terra molhada e ouvir a canção das gotas que caiam na terra. Sentia-se viva outra vez. Com a chuva chegava também o amanhecer, inda que cinzento, sofrido, dolorido.
“Hora de dormir”. Pensou Maria já de olhinhos cansados e lembranças atordoadas.
- Barulhinho bom! Resmungou baixinho embolando-se em meio as cobertas e travesseiros.
Léa Ferro, Janeiro 03, 2008.
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