O último Rei

O grande rei atravessa o corredor comprido de paredes altas e escuras, vestidas de enormes quadros, quadros de bustos sérios e impenetráveis que parecem vigiar seu andar, castiçais a cada 2 metros para iluminação do ambiente, que a luz das velas ainda deixa existir uma penumbra macabra. Dentre as várias portas deste suntuoso corredor com tapetes perfeitamente limpos e estendidos, a porta maior e mais decorada no final do corredor é aberta pelo rei. Um rangir de madeira é ouvido. Apenas isso. O andar do rei, tão calmo e silencioso mal se percebe. Dentro da sala que acabara de entrar, o teto se eleva, o ambiente é amplo, com algumas janelas estreitas e verticalmente compridas escondidas por cortinas pesadas de cores douradas e vermelhas. O mobiliário da sala igualmente ostentoso, de peças em madeira, decoradas e esculpidas nos pequeníssimos detalhes. Num canto da sala, há um estante repleta de livros que chega até o teto, na frente desta, uma mesa enorme e uma cadeira de madeira almofadada em vermelho. Em cima da mesa, um castiçal, papéis, pena e tinteiro e um globo terrestre.

O rei se encaminha até uma das janelas compridas, afasta um pouco a cortina e observa lá fora. O que vê é a frente do seu enorme castelo. Um jardim tão largo quanto a própria moradia, com flores e arbutos dispostos artisticamente por jardineiros altamente competentes. As flores, com a inteção geralmente de colorir, neste jardim não exercia a mesma função. As diversas espécies de flores são de uma única cor, que em seus diferentes tons formam figuras abstratas de uma coloração uniforme e melancólica. Por entre o jardim um linda estradinha chega até a varanda do castelo.

O que o rei procura olhando para fora não se sabe. Talvez estivesse olhando para verificar se tudo em seu castelo andava em ordem, principalmente sua fachada e seu jardim; pois para o rei aquilo que era superfície, que ficava a vista de todos, deveria receber os mais cuidadosos zelos. Ou talvez ele estivesse esperando ansiosamente a chegada de alguém muito importante, que chegaria por aquela estradinha sinuosa. Ou talvez, estivesse apenas observando o tempo, que neste momento, o sol acabava de deitar-se no horizonte, formando um nítido crepúsculo a oeste, e a leste notava-se uma tropa de nuvens cinzas e carregadas seguindo a direção do vento frio, dividindo o céu em dois lados, leste e oeste, chuva e sol, noite e dia, escuridão e luz. O rei notara o tempo ruim que se aproximava, mas nao podia sentí-lo, dentro de seu castelo maciço, com tapetes e cortinas tão longas e grossas, não sentiria uma brisa fria nem um pingo de água de toda esta tempestade que viria a derramar-se sobre a terra. Uma lareira no outro canto da sala poderia ser acesa, caso a temperatura caísse muito. Já estava quase na hora do jantar, a cozinha distante fervia de panelas ao fogo, cozinheiros e auxiliares conversando e rindo e a fazer o delicioso banquete do rei, e de seus convidados, quando fosse o caso; no entanto, na sala onde estava o rei aflito não se ouvia um ruído sequer de louças a bater e de empregados a falar. Perante o rei, os inúmeros empregados o tratavam com a máxima reverência e formalidade, como era exigido por ele mesmo, mas quando encontravam-se em sua ausência, riam da cara dele. Não havia servos rebeldes odiando-o, apenas o ridicularizavam e encontravam graça em todas as suas atitudes . Uma das coisas mais engraçadas era a vestimenta do rei. Botas, calça, colete e casacos enormes, caros e muito extravagantes. As vezes o rei percebia olhares de deboche, mas não se importava com isso, pobres subalternos, nunca entenderiam o que é uma vestimenta de rei, o quão valiosa e cheia de majestade eram aquelas nobres roupas.

Quando um calhambeque preto se avistou no horizonte da estrada, vindo em direção ao castelo, toda a aflição do rei se dissipou, fazendo-o suspirar de alívio. Foi então que ele abaixou a cortina e foi até a mesa servir-se de uma dose de uísque e se dirigiu para a porta, andou a passos rápidos e firmes pelo corredor, que agora ecoavam um tom de pressa. Depois do corredor, o rei ainda atravessou ainda outra enorme sala e chegou a escada, bastante larga, que descia em caracol, corrimão de madeira finamente talhada e vernizada. Desceu os degraus e alcançou o hall de entrada, fez força para abri a gigante porta de entrada do seu castelo, queria ele mesmo receber seu visitante e encaminhá-lo para a sala que estava antes, de modo que nenhum empregado percebesse a visita e ficasse tentando escutar através das paredes. Uma vã tentativa, pois neste imenso castelo, que abrigava quase uma centena de empregados para sua manutenção, eram tantos olhos curiosos sobre a figura deste nobre solitário, que nem mesmo seus sentimentos passavam despercebidos.

O rei recebeu seu visitante com os cumprimentos formais e pediu que o acompanhasse até uma sala mais reservada. Duas empregadas espreitavam-os por detrás de uma das colunas do hall de entrada. Após verem o rei e seu visitante subirem as escadas, cochicaram entre si, desta vez, sem piadas e chacotas, pois sabia que está visita poderia ser cansativa tanto para o rei quanto para elas. A maioria dos empregados, principalmente, aqueles que trabalhavam no interior do castelo, já sabiam o motivo da visita. Não raras vezes, presenciaram seu visitante saindo às pressas do castelo, como um bicho indefeso que foge do seu predador, enquanto o predador esbravejava do alto de sua torre imperial. Em outras ocasiões, ocorria o inverso, o rei se tornava o bichinho acuado, precisando de todos os cuidados, mimos e afetos que tantas vezes negava.

Passado quase uma hora e meia após a chegada do visitante, este sai da sala e desce as escadas a procura da governanta do castelo. Quando a encontra, demonstra um ar de desânimo e tristeza. "Acho que logo o perderemos de vez". Afirma o vistante, balançando a cabeça negativamente. "Ele está piorando, doutor?" Pergunta a governanta. "Sim, está piorando cada dia mais. Hoje tentei novamente informá-lo da sua doença e agora ele está numa grande confusão mental, pelo menos não me expulsou violentamente como já fizera outras vezes." O médico dá uma pausa e continua. "Creio que será muito díficil recuperar sua lúcidez, talvez tenhamos que tentar métodos alternativos de tratamento". "Doutor, não entendo porque ele não consegue enxergar a realidade a sua volta". "Minha querida, porque seu grande rei sofre de esquizofrenia, ele criou uma realidade parelela a nossa e vive lá, antes até conseguíamos convencê-lo de que ele não é um rei, apenas um homem rico que mandou construir este castelo enorme para isolar-se do mundo hipermoderno em que vivemos. Mas sinto que ele cada vez mais se perde neste seu universo medieval."

Luciana Marcelino
Enviado por Luciana Marcelino em 25/09/2008
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