O monstro e a face

Naquele dia, todos no vilarejo acordaram preocupados: um monstro usurpador havia chegado, produzindo um terror nunca antes visto pelos moradores. Dragões, serpentes e trolls não eram mais novidade porque num universo tão diversificado havia espaço para muitas figuras mágicas. Mas, naquele dia, o vilarejo silenciou... O monstro usurpava a alma das pessoas, deixando-as sem rosto.

Muitos tinham sido os ataques. Famílias estavam em pranto, pois os corpos não tinham mais a expressão da face. O clã Tyrlaw pranteava o ataque sofrido por Finc, o solícito menino faz-tudo da vila que, no auge de seus oito anos, não mais tinha rosto. Não chorava, não sorria ou sequer franzia a testa quando chupasse limão.

Quem seria o próximo? Por que um destino tão ríspido com os moradores do vilarejo de Wirtinger?

Audrey recebeu a notícia enquanto terminava uma poção para a felicidade. "Alecrim" - pensou- "falta um punhado de alecrim, pois alecrim é alegria!". Foi quando ouviu o descompasso da batida na porta. Mirgore invadiu a choupana da sacerdotisa, contando-lhe tudo que passara no clã Tyrlaw. Avisou Audrey que sua presença era exigida no vilarejo de Wirtinger pelo elder Larents, conhecedor dos poderes ancestrais que foram transmitidos à moça. Rapidamente as moças seguiram para a vila. "Um monstro" - pensou Audrey. "Como me livrarei disso? O máximo que fiz até hoje foram poções!"

Após ouvir tudo que o elder lhe informara, Audrey vestiu sua capa e voltou para sua casa, completamente atônita. O que fazer? A teoria era tão diferente, pois, afinal, o conhecimento ancestral fora conferido à sacerdotisa ao longo da história de seu clã. Mas nunca, antes, em toda sua existência, Audrey colocou-se numa posição de concretização do que havia estudado com afinco. "O que os outros pensarão sobre mim quando forem assistir ao ritual?" - logo pensou. E estremeceu. "Não, não conseguirei.”

Foi o suficiente para sentir a gélida pontada em seu estômago...

O caminho de volta foi todo feito em profundo silêncio. Voltar, aliás, sempre é mais difícil para o sacerdote, porque traz o fardo da responsabilidade. Audrey pensava nisso enquanto abria a porta de seu lar e prostrava-se, por alguns instantes, na segura porta que a separava do mundo desejoso por engoli-la.

Durante três longos dias não se teve notícia da sacerdotisa púrpura, reclusa em seu universo de papiros, livros empoeirados e poções inacabadas. "Droga! Nunca acabo o que inicio" - esbarrando nos vidros de mandrágora que estavam em cima da mesa. Marduk, seu gato bonachão, parecia divertir-se com a cena, pois, afinal, ele também se sentia um peixe fora d'água ali. Felino e sacerdotisa guardavam muito mais do que o ar despreocupado que conquistava os moradores de Tyrlaw...

Um naco de fresco queijo de cabra e uma boa xícara de café fizeram Audrey acordar disposta a encontrar a solução para o monstro perturbador. E assim foi... Tão logo abriu o papiro sagrado de Dewmar, a sacerdotisa deparou-se com o ritual de abertura do portal do banimento, um segredo utilizado há 1.000 anos, numa época tão remota, que muitos dos moradores da vila sequer poderiam imaginar quantos perigos rondavam a Terra de Waldespat.

"Hum, vejamos." - murmurou, colocando seus olhos no papiro, todo escrito em élfico, língua-mãe de todos os dialetos e troncos semânticos falados por aquelas redondezas. "Lua cheia, palavras mágicas, adaga e vontade." "Acho que está tudo certo por aqui! Muito simples esse ritual! Como, então, ninguém até agora ousou fazê-lo antes de mim?" O tórax de Audrey inchou, o cardíaco expandiu-se em orgulho, pois, afinal, ela era a escolhida, dentre tantos outros comuns, que sequer ousaram utilizar o feitiço.

"Não precisarei de muito para aniquilar o monstro" - falou para seu felino Marduk. Audrey, porém, envolta num véu de regozijo e orgulho, mal teve tempo de prestar atenção na pontada incômoda que também fez seu plexo solar inchar, desta vez, quedado por uma dor latejante. "Não tenho tempo para ficar aqui sentindo dor. Vamos, Marduk, temos trabalho! É noite de Lua Cheia e preciso acabar de vez com isso!" O máximo de animação que Audrey conseguiu arrancar de seu gato foi um sonoro e bocejante meow, pois Marduk ali mesmo ficou. "Preguiçoso! Que seja, então! Irei sozinha!" E assim Audrey vestiu sua capa púrpura, pegou sua adaga, o papiro sagrado e rumou para o Morro Tintergen, para acabar com o suplício de seu povo.

Enquanto caminhava silenciosa, a sacerdotisa observava as nuvens acinzentadas que insistiam em colorir o céu com a mácula da incerteza. “Detesto quando o tempo não se fixa logo!” – lembrou Audrey. “Não será muito agradável abrir um portal encharcada!”. Quando lá chegou, prostrou-se diante da pedra sacerdotal, palco dos sacrifícios ancestrais outrora realizados. Ao tocar a pedra, Audrey sentiu o desconforto do grito agonizante daqueles que jazeram ao fio da navalha afiada do athame sacrificial. Mais uma vez, seu estômago relutou, desconfortável, a aquietar-se.

No início, o silêncio. Audrey abriu seus olhos, observando o mundo que estava ali, imóvel, a cobrar da sacerdotisa um fôlego faiscante sequer. Ela permanecia ainda imóvel, porque a dor dilacerante em seu estômago tinha sido a companhia mais fiel que encontrara até então. Calada, fixou o papiro na pedra, abrindo cuidadosamente o roto papel milenar para ler a invocação, não sem antes tomar cuidado de olhar ao redor, para ter a certeza que não estava sendo observada. "E se alguém se aproximar?" - pensou - "E se eu não conseguir abrir o portal?" - murmurou a sôfrega voz, espelho da alma de Audrey.

O athame, trêmulo, jazia à mão da jovem, tentando manter a virilidade onde nada mais conseguia se sustentar. "Qual é a pronúncia disso mesmo?" - bradou, impaciente, a insegura sacerdotisa. "Não, definitivamente esse papiro está errado!" - quis a moça ingenuamente acreditar, quando, de súbito percebeu que havia um latente embate entre a lacerante dor em seu estômago e o coração pulsátil. Este batia forte, retumbante, caloroso, porém, insuficiente para fornecer o que a bruxa necessitava para abrir seu tão sonhado portal.

Enquanto isso, despontava, fraco, no horizonte cansado daquele entardecer, o vórtice que, um dia, poderia ser o portal dimensional descrito no papiro de Dewmar. Nessa hora, nesse exato momento do último suspiro em que a sombra do portal esvaneceu nas brumas, Audrey chorou. Chorou como nunca antes havia feito. Chorou como se fosse aquele o primeiro dia de sua vida, como se tivesse tido arrancada das entranhas de sua mãe, tirada do veludo amável da casa forte. Chorou por sentir no peito sua solidão. Chorou... Simplesmente chorou e, de tanto chorar, não teve tempo para perceber que havia adormecido, sozinha, na imensidão de sua dor.

Se é verdade que uma boa chuva sempre lava a alma, não se sabe. Mas Audrey acordou confusamente feliz quando a ameaça de pranto do céu se concretizara. Ainda não sabia se a água em seu rosto era o resquício das lágrimas insistentes ou a chuva que previra, mas, de fato, nada disso importava, pois retornando do mundo que era somente seu, a sacerdotisa começou a compreender as questões da vida.

O papiro não era mais seu inimigo, pois, agora, a sacerdotisa dominara suas emoções confusas. Em seu peito, latente, o coração vibrante, do qual incandescia a luminosidade do conhecimento ancestral que Audrey trazia em seu sangue. De seu útero, a inquietante marca da criação: a pontada firme, forte e contusa do grito de guerreira que ressoava pelos vales de Tintergen. E assim Audrey seguiu firme em seu ritual, entoando a balada do ritual descrito no papiro sagrado de sua linhagem primeva.

Arrebatada pela faísca do fogo sagrado que vinha de seu cântico, Audrey sentiu o empuxo de um raio: retumbou o portal, límpido, claro e íntegro, surgido da superação de seus medos, revelado pela nobreza de sua alma, ali disposta a ceifar sua vida em benefício de sua gente. Sozinha, fortalecida em sua missão, a sacerdotisa púrpura evocou os raios dos quatro elementos, conclamando a essência a compor a integralidade da alma.

Uma fenda abriu-se no tempo-espaço multidimensional, de modo a brindar Audrey com um orbe de constelações nunca antes acessado em sonhos ou em profundo mundo meditativo. Galáxias infindáveis, de matizes de cores inacessíveis à parca tridimensionalidade cativaram a sacerdotisa: era, enfim a hora de procurar o monstro, pois o medo, alimento do espírito que ascende, ficou apenas em um remoto e esquecido canto da alma daquela mulher.

De súbito, empunhou seu athame, colocando sua capa e correndo, como nunca antes havia feito. Sabia Audrey que o monstro encontrava-se nos limites da Floresta de Marthgger, pois fora lá seu último ataque desfigurativo. Nada mais importava para a sacerdotisa, pois o medo, seu companheiro de longínquas jornadas, estava, ali, acalentado pelo rompante de uma coragem avassaladora, ímpar, que bombava no peito da profetisa.

Quando entrou na densa floresta, sentiu o fluxo da energia que dali emanava, através da grandiosidade das árvores anciãs, imóveis, ali presentes, com a sabedoria de quem sempre está a esperar os limites do mundo. De súbito, o silêncio da alma de Audrey. O coração, outrora retumbante, cedia espaço para o ímpeto da preservação do corpo, fazendo com que os pés da moça tocassem o solo como delicadas penugens, que bailam sobre um intenso mar de tranqüilidade.

O ar, intensamente oxigenado, deixava a sacerdotisa trôpega. Os céus refletiam a intensidade de um verde-musgo belíssimo, silenciador do espírito. Audrey respeitava e temia tudo aquilo que lá estava, nascido muito antes da moça e de seus ancestrais pensarem em brotar das entranhas do mundo.

O grito. Eis a conformidade do instinto guerreiro, percebido pela sacerdotisa como sinal do fim do grande embate, um embate que, ao final, não era tanto com aquela pobre alma a residir no corpo do monstro, mas, ao contrário, com a sombra que habitava, até então, a essência da profetisa. Audrey dirigiu-se para a clareira, lembrando que o portal estaria fechado dali a pouco. Era necessário conclamá-lo no exato instante em que pegasse no braço do monstro, pois a multidimensionalidade espaço-tempo viria numa egrégora de força, ao socorro da feiticeira.

Audrey encontrou, ali, a sombra. Receosa, observou bastante aquele ser que todos temiam. O monstro estava à sua frente, sentado, digerindo uma lebre com apetite invejável. No peito da fera, o retrato do sofrimento: todos os rostos que ele havia coletado insculpiam-se em uma paisagem coberta de sangue e suor, já que as lágrimas, ah, as lágrimas, ficaram para trás, com os entes queridos. Era o grito sufocado de um silêncio que Audrey escutava com o ouvido de seu coração.

“Você está cercado! Ordeno-lhe que venha para a luz, para que retorne ao seu mundo! Aqui nunca foi e não será seu domínio!” – bradou a moça, empunhando seu athame e convocando o poder dos cincos elementos.

A força de Audrey não contou, porém, com o olhar. Bastou um olhar lacrimejante de um monstro encurralado, para que o sentimento mais nobre pudesse pulsar na veia da bruxa. Tomada pela mais intensa compaixão, Audrey quedou. O coração enterneceu ante o olhar perdido daquele monstro que todos tanto temiam.

Ela dele se aproximou. Foram os passos mais demorados que alguém poderia dar, desses que levam milênios e apenas são percebidos quando os cabelos brancos jazem à fronte da face. Audrey aproximou-se do medo e viu em seus olhos a candura do espelho de sua alma. “Você não pode ficar aqui” – afirmou com a gentileza de uma alma enamorada de si – “Está ocasionado problemas” – apontou para o tórax do monstro. As janelas da alma do monstro encontraram, então, a luminosidade de Audrey: ele compreendera. Sim! Ele a compreendera e isso foi o bastante, onde ninguém, até então, não havia sequer entendido aquela pobre alma usurpadora.

Audrey, então, abraçou o monstro e, fazendo isso, abraçou a si, sentindo uma forte corrente a percorrer seu corpo e percebendo que, ali, eram apenas um, monstro e sacerdotisa, caçadora e caça, imagem e realidade. Brandindo as palavras evocadas de poder, Audrey chamou o portal, que se deslocou num estrondo, abrindo a fenda: era momento de separação, regado às lágrimas que a identidade de Audrey encontrou para reconhecer no monstro seu afim, o somatório de todos os medos que alimentava a alma da feiticeira e a impedia de seguir seu curso na história.

Quando a eternidade daquele abraço esvaeceu, a guerreira gentilmente guiou o monstro até o portal. Com os olhos marejados, ela sentiu saudades de tudo que passara até ali, percebendo a hora de partir para outros rumos, pois sua tarefa estava finalmente concretizada. Ele se foi e levou consigo os medos que aterrorizavam a sacerdotisa. Tudo estava finalmente acabado. Será?

Seguindo seu caminho de volta ao vilarejo, Audrey descobriu que não havia retorno. Como retornar para a morada do sossego da alma, quando marcantes são os vincos que as experiências proporcionam? Quando a trepidação avassaladora da essência cujo equilíbrio se rompeu inicia a entropia inquietante? Como acessar o que ficou para trás, quando um turbilhão de forças age, soprando a vela rumo ao destino que se desconhece? Audrey não sabia, mas sentia a sublimação de suas experiências, tendo a certeza de que seria impossível retornar intacta ao vilarejo e dividir-se, em essência, quando a alma busca a quietude da transcendência, inalcançável pelos domínios da concretude.