A MOEDA

“Deus escolheu as coisas loucas do

mundo para envergonhar os sábios”.

São Paulo.

Terminava de fazer minha feira e estava prestes a comprar meu pastel, como de costume, quando ele cruzou meu campo de visão. Se eu não fosse uma pessoa inquieta, com facilidade para identificar pessoas e situações inusitadas, talvez tivesse deixado passar despercebido o mendigo, que logo de pronto chamou a atenção de meu olhar.

Ele passou entre farrapos, com a direita estendida e a esquerda a se apoiar em um bastão. Carregava ainda algo que parecia ser uma trouxa nas costas, por sobre uma capa. Uma figura insólita, tal qual sua conversa com um transeunte.

- Você teria uma moedinha para me dar?

- Teria, mas não para lhe dar. – respondeu o homem.

- Quanta mágoa e quanto rancor, são capazes de tornar uma pessoa tão insensível?

A pergunta do mendigo não afetou o homem, mas fez com que parasse e retirasse do bolso uma moeda.

- Você sabe quanto eu tive que trabalhar para receber esta moeda? – Falou o homem em direção ao mendigo, ostentando a bela moeda reluzente entre os dedos.

Vendo o brilho da moeda prateada, sua possível esmola, a aguardá-lo nas mãos do homem ou talvez para responder a sua provocação, o mendigo mudou sua postura e assim perguntou.

- Se tu tens, nobre senhor, por que não podes me dar?

- Porque dar não é tão fácil quanto receber. – Foi a resposta do homem.

- Se tu queres algo em troca de tua bela, suada e reluzente moeda, te dou. – respondeu o mendigo.

- Acredito realmente nas trocas mendigo e não faço nada se não puder receber algo em troca.

- Me humilho então diante de ti, nobre cavalheiro, em troca de tua honrada moeda.

- E quem te disse mendigo, que tua humilhação e teu joelho no solo, satisfazem o meu desejo para que o escambo se concretize?

- Se tu não queres minha humilhação – falou o mendigo ao se levantar do solo apoiado no cajado – aceite então minhas desculpas – curvou-se em sinal de reverência.

- Tuas desculpas tampouco me terão serventia. Quero algo em troca desta moeda, algo que para ti tenha um certo valor, como valor para mim tem esta moeda.

- És então como Judas? Mais vale o dinheiro do que o Amor ao Cristo?

- Judas era um cavaleiro. E sou sim como ele. E tua sabedoria, mendigo, é loucura diante de Deus.

- És tu um louco. Isto é o que és. Discutes com um mendigo, a troco de uma moeda, amas a Judas acima de Deus e de seu filho Jesus. Não quero nada que provenha de ti. – Blasfemou o mendigo se virando para ir embora.

- Porque além de pobre, és ignorante e tens a vida que mereces ter. Quem dera o diabo tivesse não o poder que vem de Deus, mas o poder que os homens lhe atribuem. Tu não andarias sobre a terra para poluir o espaço por onde passas com tua podridão. – Retribuiu o homem à altura. Mas antes que o mendigo pudesse partir, depois das bravatas trocadas, o homem já mais calmo o deteve com estas palavras.

- Afinal, queres ou não o dinheiro?

- Está muito caro para mim para conseguir essa moeda. Prefiro seguir adiante e pegar outras tantas com alguém que não queira algo em troca.

- Venha aqui mendigo, pois o que te darei é algo que vale mais que um milhão de moedas.

Não sei se por curiosidade ou ganância, o mendigo parou, direcionou os olhos para o homem fechando-os um pouco numa rápida piscada, como para ajustar o foco, ajeitou a trouxa e a capa em suas costas e deu os três passos que o separavam do homem.

Os olhos se cruzaram e olhos nos olhos as palavras cessaram. O mendigo estendeu a mão, o homem colocou nela a moeda, segurando junto seu punho como em uma queda de braços. Sem redirecionarem os olhares, o homem puxou a mão do mendigo para junto de sua face e a beijou, trazendo logo depois para junto do coração.

Quando o homem soltou o mendigo, ele caiu no solo de joelhos em um amargo e sonoro pranto. Assim que dei por mim, procurei o homem por entre os transeuntes, mas aquela estranha figura já havia desaparecido.

Paguei o que devia do pastel e segui em direção ao mendigo. Corri no intuito de tentar ajudá-lo, mas quando cheguei ao local, jazia ali apenas um trapo.

Na verdade não era bem um trapo. Era uma capa. E por debaixo dela havia ainda o cajado, um alforje e um par de sandálias.

É. Quem eram eles, não sei. Que verdades revelaram naquela manhã, penso que um dia descobrirei. Coletei os pertences do mendigo, posto que os guardo até hoje. Quanto à moeda, não me recordo de ter mencionado a moeda. Era um denário. Um reluzente denário de prata.