A VIAGEM

I

Sentado numa poltrona em frente à janela aberta, Roberto examinava contra a luz do sol, os cubos de gelo derreter, esmaecendo gradativamente o whisky que de maneira generosa colocara em copo alto.

Ainda lhe martelava a fronte o olhar recriminador de Elvira.

Gritavam-lhe, em reverberações, as duras palavras que ouvira ao chegar ao hospital onde Miguel, em coma, pacientemente, esperava a morte.

- A culpa é sua... assassino!

Coincidentemente, toda aquela história havia começado cinco anos atrás quando ganhara uma passagem, ida e volta, à Disneylândia.

Foi uma disputa sensacional...

Na última hora aquele pedido “bola de cristal” salvou o primeiro lugar e colocou no centro da mais fantástica aventura na selva que o homem jamais imaginara.

II

- Um momento da atenção dos senhores!

Era o vice-presidente para assuntos da América Latina, homem fino em todos os sentidos da palavra, que atrás de óculos com lentes muito grossas falava ao microfone.

- O senhor Roberto da Mata foi o ganhador do concurso, mas os vencedores fomos todos nós.

Conseguimos nesses três meses de campanha tirar a filial Brasil do vermelho...

Parabéns aos senhores pelo esforço e os sinceros agradecimentos dos acionistas.

Risos, palmas, abraços e um coquetel encerraram mais aquele dia.

O telefone tocou às cinco da manhã. Sonolento Roberto atendeu com má vontade. Era Miguel que entusiasmado com a festa da data anterior, perguntou em tom de gozação.

- Como é que é? Já tirou o passaporte, Malandro?

- Porra, não se pode mais dormir... risos...

Marcaram às nove da manhã na porta da Polícia Federal...

Roberto tornou a deitar-se, mas não conseguiu adormecer outra vez. Foram noventa dias de luta para conseguir a viagem e agora o cérebro não parava, arquitetando planos...

Chegado aos Estados Unidos, alugaria um carro e sairia com uma gringa a cada dia...

Podia até sair com duas se elas topassem...

Mas onde colocar a mercadoria da “bola de cristal”?

Severino, dono do Mercadinho Canto da Vila, não tinha área física para armazenar, nem clientes para consumir tantas pilhas...

Precisava organizar um mutirão com os amigos vendedores, como na época de escoteiro, para desovar as pilhas que se estocadas, dariam para iluminar o Severino por cinqüenta anos...

Mulher americana só sabe falar inglês...

Devia ter escolhido outro cliente...

Mas Severino é pontual e assim o pedido não corria o risco de ser rejeitado pelo setor de crédito...

Mulher americana tem pernas finas e peitos grandes...

Por que em vez de pilhas eu não vendo leite em pó?...

E se estiver fazendo frio por lá?... Aquela merda de tempo, ninguém controla... Brasil sim é que é lugar para se viver, 365 dias de sol por ano...

Preciso achar um jeito de dar fim às pilhas...

Mulher americana não toma banho diariamente...

O verão de lá deve ser frio prá burro...

O telefone tocou de novo.

Sobressaltado olhou para o relógio da cabeceira e viu que estava atrasado para o encontro com Miguel.

Atendeu ao telefone e disse um palavrão ao ouvir a pergunta sem graça...

- Penico de barro enferruja?

III

Andando de um lado para outro, braços dados com Elvira e Roberto, Miguel estava radiante.

Finalmente, um ente nascido em Cuité dos Noia, ia pisar a terra do Tio San.

Prometeu uma centena de vezes que iria arranjar um fim para as pilhas. Cutucou o amigo para que elogiasse a saia plissada da esposa que fazia um esforço tremendo para se equilibrar num sapato de salto alto só porque viera para o aeroporto.

- Atenção senhores passageiros...

O alto falante do aeroporto comunicou que o vôo 315 da Pan Am estava com uma hora de atraso por causa de um pequeno problema em uma das quatro turbinas.

A viagem poderia ser realizada sem problemas, mas pelo zelo profissional e em nome da segurança a empresa só iniciaria o voo quando o problema estivesse solucionado.

E tome cafezinho e conversas fiadas horas a fio, pois o problemazinho só foi contornado seis horas depois do primeiro aviso.

A essa altura, Elvira já perdera toda a elegância inicial, pois os sapatos novos apertavam tanto, que ela andando, mais parecia um papagaio.

Soltos os freios o avião precipitou-se no vazio e em poucos minutos as luzes da cidade desapareciam lá em baixo.

Avisos, demonstrações de uso de máscara em caso de despressurização da cabine, como usar o assento flutuante em caso de pouso n’água, saídas de emergência...

O jantar foi servido imediatamente devido ao atraso...

Comidinha leve para que não houvesse problemas de digestão, pois a viagem estava programada para durar doze horas e o avião só dispunha de quatro sanitários para a população de cento e noventa e quatro pessoas.

Apagadas as luzes do salão Roberto foi tentar mais um whisky e sondar a possibilidade de marcar encontro com a aeromoça morena baixinha, tipo oposto às americanas, que ele pretendia faturar quando estivesse gastando seu inglês insipiente.

- Não sou solteira senhor. Meu marido é o co-piloto deste voo...

Decepção logo na primeira investida...

Afinal estaria perdendo o faro?

Horas depois o avião pousou suavemente no aeroporto de Belém as rodas quase tocaram as águas turvas do Guamá.

Desceram todos para nova manutenção da aeronave...

Uma hora depois todos embarcaram aumentando a população para duzentas e vinte pessoas.

Duas horas e meia depois de ter deixado o Val-de-Cans com destino à Bogotá, o avião perdeu altitude.

Turbina em chamas..

Despressurização da cabine...

Pânico generalizado e o solo se aproximando depressa demais..

Caíram na floresta alagada.

Gritos, choros, gemidos, ordens apressadas, portas de emergência abertas, escorregadores inflados...

Roberto ajudou a um comissário de bordo a abrir a janela e arrastou-se para cima da asa levando o assento flutuante.

A água já ocupava todos os espaços, abafando o fogo.

A correnteza levava uma língua de combustível em chamas mata adentro.

Roberto tentou tomar pé, mas a areia estava muito abaixo do que poderia alcançar com a ponta dos pés...

Olhou em torno de si, aproveitando a luminosidade das chamas, eram poucas as pessoas agarradas aos assentos flutuantes, a grande maioria havia mergulhado para sempre na água escura.

Só o leme do avião ficara de fora, mas lentamente mergulhava também.

Roberto pensou em se aproximar de um grupo de pessoas reunidas em torno de uma balsa feita com os assentos flutuantes onde havia sido colocado um senhor que perdera o braço e sangrava muito quando uma delas gritou...

- Piranha... tentaram nadar para se afastarem, mas os vorazes peixes dizimaram todos apesar dos gritos desesperados.

Revelando um sangue frio que desconhecia em si, Roberto bateu os pés lentamente em contra corrente para se afastar do banquete antropofágico e das chamas sem chamar atenção.

Apesar de ser perto do meio dia, a floresta estava em penumbra por causa das árvores altas.

Os cipós serviram de escada para Roberto subir numa arvore e ficar bem acima da lâmina d’água.

Estava salvo...

Mas será que se pode considerar salvo um homem só, sem alimentos, sem instrumentos para orientação ou defesa, no meio de uma selva densa, alagada, vestido apenas com camisa de seda, calça jeans e sapatos de lona?

Um balanço rápido registrou carteira de cédulas com US$ 100,00, talão de cheques de viagem do City Bank, passaporte, CZ$ 500,00 com Villa Lobos regendo sua sinfonia amazônica...

Quanta ironia...

Óculos escuros com lente quebrada, chaveiro com a chave da mala que ficara no avião, cortador de unhas e o inseparável canivete suíço.

Não era muita coisa, mas para quem estava vivo depois de assistir a morte de duzentas e dezenove pessoas, quase ao mesmo tempo, não era nada mal.

O corpo ainda tremia ao lembrar a iminência da morte pelas piranhas. Como sair dali?

Apesar do curso de escoteiro não aprendera a voar...

Se ao menos fosse como Tarzan sairia voando nos cipós bem acima d’água...

Era isso, um barco de cipó!

Depois a correnteza levaria o barco e fatalmente passaria por um povoado qualquer.

Precisava trabalhar rapidamente, pois sabia que o homem aguenta até três dias sem comer, depois...

Antes de começar a trabalhar tirou o cinto de lona e fez uma tira para prender o canivete.

Se ele escapulisse da mão estaria preso no braço.

Cortou cipós finos para facilitar a tecidura.

Passar de uma árvore para outra era fácil devido ao emaranhado de cipós.

Apanhou jenipapos.

Com folha de buriti fez peneira para tentar pegar algum peixe.

Faria zoada na água com a mão esquerda e com a direita manobraria a peneira...

Os peixes não escapariam...

Fez esteira para o fundo do barco com duas palhas grandes, trabalhou com afinco até escurecer completamente.

Tomou, junto com um pouco d’água e um jenipapo, a maior surra de mosquito da sua via.

Como os insetos não deixavam que dormisse, continuou trabalhando no escuro e descobriu que usar o tato nem é tão difícil quanto imaginava. Constatou que não precisa ser deficiente visual para fazer as coisas sem vê-las.

Quando raiou o terceiro dia, o barco estava pronto.

Com muito cuidado para que ele não emborcasse arriou até o rio.

Sua obra de engenharia náutica, embora meio adernada, flutuou com relativa facilidade.

Pegou a cesta com os jenipapos, o remo de buriti e começou a remar rio a baixo.

Não foi difícil encontrar a correnteza principal seguindo os rodamoinhos que se formam com a atração da corrente.

A mata ora densa, ora rala ia passando cada vez mais rápido.

Ao longe, o som de uma queda d’água.

Com o coração aos pulos remou com toda força e parou num barranco.

Puxou o barco para o seco e foi procurar como contornar a queda. Marcou o caminho com o canivete para saber voltar, pois sabia que dentro da mata basta um metro para a pessoa estar irremediavelmente perdida.

Contornou uma sebe e viu uma ravina num montículo com uma vereda sem mato, denunciando seu uso frequente.

Uma alegria enorme tomou conta de Roberto antevendo sua saída dali. Estava tão feliz que nem reparou que estava sendo seguido bem de perto por seres estranhos.

Andou até que o chão se abriu e caiu numa armadilha.

Depois de muito gritar, homens pequeninos apareceram na boca do buraco.

A fisionomia amistosa dos recém chegados animou Roberto a pedir que o ajudassem a sair.

Os pequeninos não responderam, mas uma força estranha fez com que Roberto levitasse, saindo do buraco.

- Quem são vocês? Que lugar é esse? Como é eu me fizeram voar?

Os homens não responderam e Roberto sentiu telepaticamente a ordem de segui-los. Caminharam até o fundo da ravina que se abria numa planície plantada como um tabuleiro de xadrez.

Não havia construções.

Roberto foi levado para uma elevação e desceu a escada que apareceu quando o pequenino que andava na frente abriu a porta escondida pela vegetação.

IV

Os jornais anunciaram sem grande alarde que o avião da Pan Am havia desaparecido na selva amazônica quando sobrevoava região inexplorada.

Não se tinha notícia de sobreviventes, caças da força aérea do Brasil e da Colômbia estavam vasculhando a provável área do desastre. Muito pálido Miguel perguntou à Elvira.

- Você já leu isso aqui?

- Não. Só peguei no jornal para trazê-lo para dentro.

- Provavelmente a esta hora, Roberto está morto.

Elvira largou a faca com a qual passava manteiga numa torrada em cima da xícara de café, sujando a toalha.

- De onde você tirou essa ideia? Como pode ser isso?

- Está cá no jornal. O avião dele desapareceu em plena selva e ninguém sabe dizer nada sobre o acidente. Possivelmente todos a bordo morreram.

- Meu Deus, Roberto saiu daqui tão contente... fez tantos elogios a minha saia nova que eu já estava até encabulada... o que o destino não faz com a gente, né? Quem diria que um homem tão cheio de vida, com tantos planos para o futuro ia acabar tão rápido.

Não posso negar que as vezes não gostava muito dele, mas antes do embarque ele foi tão gentil, parecia que estava se despedindo... e ainda tem gente que tem orgulho...

- O que será que a companhia vai fazer? Perguntou Miguel para ver se a mulher parava de falar.

- Deve mandar um telegrama para a família dele e dar o caso por encerrado, ou então...

- Preciso telefonar para os colegas para darmos saída nas pilhas que Roberto vendeu para Severino. Onde está minha agenda?

- Aí na mesinha...

- Alô, Gregório! Já leu o jornal?... Roberto morreu no acidente com o avião dele...

... Ontem depois que saíram do aeroporto de Belém...

Essa noite precisamos juntar os colegas para dar fim a todas aquelas pilhas... Roberto não merece ficar com o nome sujo depois de morto... ele sempre foi um cara legal...

V

- Quando os conquistadores espanhóis chegaram, nossos antepassados refugiaram-se na floresta, pois aqui estariam protegidos pelas barreiras naturais. Nuvens de mosquitos, serpentes, felinos, rios caudalosos ainda hoje são a proteção ideal contra o invasor que veio exclusivamente em nome do cristianismo, roubar tesouros e destruir civilizações mais adiantadas do que a deles.

Quem falava era um homem de idade indefinida, sentado numa cadeira de espaldar alto feita de vime. A roupa era semelhante a dos homenzinhos, apenas tanga de palha. Cabelos longos, abaixo dos ombros eram enfeitados com conchas e contas brilhantes. Adereços de ouro com pedras completavam a vestimenta. Homens e mulheres vestiam iguais e não passavam de um metro e vinte de altura. Chucualca contou a trajetória do seu povo.

Eram incas e trouxeram para aquele vale a biblioteca que serviu de base para o desenvolvimento que alcançaram com muita disciplina e exercícios mentais.

Apenas por tradição permaneciam afastados do convívio das grandes cidades.

Haviam entrado em comunicação com seres de outras galáxias e descobriram o contato telepático, a fórmula para desintegrar matéria, aprenderam a levitar.

Roberto teve oportunidade de participar do encontro com habitantes de um planeta do sistema da estrela Vega.

Eles não produziam som, apenas luzes...

Roberto recebeu de presente um medalhão capaz de transmitir sua imagem e voz se estivesse sintonizada com a pessoa receptora, e também podia mover objetos.

- Posso fazer uma máquina de escrever funcionar à distância?

- Sim.

Foi a resposta que Roberto queria.

Precisava sair dali... Voltar para o mundo...

O receio de serem descobertos fez com que desenvolvessem um sistema de camuflagem, tão perfeito que em pleno século XX, o vale não havia sido descoberto, apesar das visitas periódicas que faziam às cidades.

Conseguiam inclusive, ficar invisíveis.

Roberto ficou sabendo que ele fora admitido na tribo por ser o único sobrevivente e o homem nessa situação torna-se eternamente grato por qualquer coisa que receba.

Passados quatro anos do desastre, Roberto manifestou ao seu amigo Chucualca o desejo de voltar.

- Eu já esperava que você manifestasse esse desejo que li em seus pensamentos desde muito tempo.

- Vou me comunicar com meu amigo Miguel para que ele venha até aqui e conheça vocês.

- Não. Isso nós não permitiremos. Você entrará em contato com ele e deverá fazer com que chegue até bem perto.

Simularemos um acampamento, seu aspecto será de uma pessoa que passou todo esse tempo na mata.

VI

Elvira acordou no meio da noite com o sono agitado de Miguel.

Ele quase pulava na cama, emitindo um som estranho, misto de uivo e gemido...

Acordou o marido e foi buscar água para ele beber...

Miguel contou o sonho que tivera com Roberto, muito vivo, vinha em sua direção.

O sonho repetiu-se várias vezes, durante o dia a visão de Roberto invadia a sala de trabalho, o refeitório, aparecia na tela da TV.

- Preciso de um galo branco, duas garrafas de aguardente, maços de velas pretas e vermelhas, dez metros de fita azul, azeite de dendê, dois quilos de farinha da melhor que tiver...

Do jeito que o finado está lhe perseguindo ou você faz o despacho ou se encanta em menos de um mês.

Quem falava era o pai de santo que uma comadre de Elvira arranjara para fazer a consulta e que Miguel, a muito custo, concordara em ir para ver se dava fim àqueles sonhos que tão comuns estavam que na noite em que Miguel não sonhava, acordava de mal humor.

Pai Amaro era negro fula, mais de metro e noventa, com cento e tantos quilos, cabelos Black Power pintados de acaju, usava invariavelmente camiseta sem manga, calça estampada de florões bem fofa, tamancos de salto alto, várias correntes de ouro com grossas medalhas e figas.

Bicha até na certidão de nascimento... fumava o dia todo, um cigarro atrás do outro, colocados numa piteira longa, enfeitada com madrepérola, presentinho de um deputado federal, também bicha, que trouxera do exterior, aquela lembrancinha para seu pai de santo.

- Não esqueça que para fazer um trabalho desses vou querer CZ$ 5.000,00, pois os riscos de desencarnar são grandes e não quero deixar meu filho desamparado.

Com o passar do tempo, a visão de Roberto ficava cada vez mais nítida e conversava com Miguel, dando detalhes do desastre, e de como conseguira escapar com vida.

- Preciso que você me dê um sinal concreto de que está vivo para eu não ficar louco. Elvira não me deixa em paz. Tenho que fazer um despacho ou então ela morre...

- Coloque papel na máquina e não mude o pensamento até que eu tenha terminado de escrever.

Miguel fechou a porta do escritório para não ser interrompido, colocou o papel e sentou de costas.

A máquina escreveu sozinha... “estou bem, venha me buscar, estou com muita saudade de tudo quanto deixei e sei que só posso confiar em você para atender meu pedido. Estou a uns duzentos km da fronteira do Brasil com a Colômbia na margem esquerda do rio Tibiruí...”

Bateram na porta, Miguel foi atender e mostrou o papel escrito a Gregório que olhou ironicamente para o colega de trabalho.

- Doutor, meu marido ficou louco?

Essa história de ir para a floresta buscar uma pessoa que morreu a mais de quatro anos num desastre de avião, não é coisa de doido?

- Os testes foram categóricos, seu marido não tem problemas mentais.

Faltava pouco para meia noite quando chegaram ao portão do cemitério.

Pai Amaro, incorporado com o santo, charuto na boca, aceso soltando baforadas e chocalho na mão esquerda, suava por todos os poros.

Um ogã veio com o atabaque para curiar o santo que gostava muito de dançar.

Era um rapazinho de uns catorze anos, cabelo pixaim espichado, pintado de louro, magro como uma seriema, unhas longas pintadas de vermelho vivo, um anel em cada dedo, brincos de argola nas orelhas.

Vivia na casa do pai de santo, como seu filho, desde que levara uma surra de criar bicho, dada pelo pai de verdade, quando descobriu que ele era veado, e um estivador das docas, não podia admitir tal ofensa.

Acenderam todas as velas para iluminar o alguidar com tudo a que o santo tinha direito, colocado do lado esquerdo do portão para que Exu Caveira se servisse.

- Pronto, agora quero ver se o finado não deixa seu homem em paz.

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- Senhor Miguel, é humanamente impossível permanecer vivo por tanto tempo na selva... por outro lado, não que eu desconfie de sua honestidade, mas num momento de alucinação o senhor bem que poderia ter escrito isso.

Com esse discurso, o gerente da Lumipilhas do Brasil, deu por encerrada a conversa de ir buscar Roberto.

Não satisfeito, Miguel procurou os coordenadores do Projeto Rondon, com o objetivo de se engajar numa expedição ao extremo norte do país.

Tirou férias antecipadas e embarcou ainda sofrendo os efeitos das vacinas tomadas de última hora.

VII

- Meu amigo Chucualca, Miguel está a cada dia mais próximo de nós.

- Sim, você terá que ir ao encontro dele e faça-nos um grande favor. Ainda que se lembre de como chegar aqui, não venha. A não ser que seja só e para sempre. Por enquanto você está imunizado contra várias doenças, mas se quiser voltar vacine-se contra a febre amarela.

Suba numa canoa e reme contra a corrente, pense em nós, mais cedo do que você imagina, nós o encontraremos.

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- Vou ser sincero com os senhores...

Não acredito que Miguel saia dessa com vida...

Ele realmente não teve sorte. Contraiu ao mesmo tempo raiva e febre amarela.

Os morcegos vampiros que vivem na fronteira norte são os maiores transmissores de raiva que se sabe e o vírus é mutante, as vacinas que ele tomou não tiveram tempo para completar a imunização, mas ele ainda está vivo, podemos não perder as esperanças...

O médico afastou-se e Roberto sentiu o olhar furioso de Elvira como um raio a lhe consumir...

- Eu sempre disse a Miguel que você estava morto e que ele não tinha nada que fazer essa viagem infernal...

Mas ele não me deu ouvidos e agora está aí mais morto que vivo...

E você que deveria ter morrido a tanto tempo, sem sofrer coisa alguma. Mas o remorso vai lhe corroer pelo resto da vida...

Para se ver livre daquele falatório, Roberto virou em cima dos calcanhares e saiu do hospital.

No estacionamento notou que Elvira lhe seguira os passos e atirou-lhe na cara...

- A culpa é sua, assassino...

Roberto não voltou mais ao hospital até que soube, pelo telefone, que Miguel havia falecido.

- Eu não quero saber quanto vai custar. Quero que a placa fique pregada no chão, na entrada principal da igreja e que nunca mais saia de lá.

- Eu sei que gratidão não tem preço meu filho, mas as obras da igreja estão paradas por falta de verba e se você der uma espórtula de CZ$ 10.000,00 a igreja aceitará e colocará a placa onde você disse.

Roberto teve vontade de esmurrar o velho muquirana, fantasiado de padre que o olhava por trás de uns minúsculos óculos redondos torcendo as mãos.

- Assim será feito. Foi o que respondeu, emitiu o cheque e entregando ao padre disse, desconte na próxima semana.

A placa de mármore branco com a inscrição em baixo relevo era simples, sem arabescos, mas custara CZ$ 500,00 tinha escrito...

“Aqueles que arriscam tudo em benefício do seu semelhante sem esperar recompensa, são os verdadeiros habitantes do céu. Obrigado Miguel por ter dado sua vida por mim - Roberto - outubro de 1986”

Venderia o apartamento, o carro, todos os livros, o telefone e voltaria para a selva.

Com a sobra do dinheiro pagaria parte do prejuízo que Severino tivera com as pilhas, deixaria gravado na pedra seu eterno agradecimento e se veria livre de Elvira.

VIII

Roberto deixou a poltrona e abriu a torneira para tomar o maior banho de banheira de sua vida.

Ao abrir a torneira, ouviu o estalido característico de equipamento elétrico ligando...

Olhou-se no espelho, nesses últimos dias havia envelhecido cem anos, foi para o quarto, tirou a roupa com que fora ao enterro de Miguel.

Vestiria um pijama ou ficaria enrolado na toalha mesmo...

Passou pela sala e completou o whisky...

O vapor havia tomado conta de todos os espaços. Entrou na banheira e como a água estivesse muito quente, tateou para abrir a torneira de água fria.

Pegou ao mesmo tempo nas duas torneiras e recebeu uma descarga maciça de 110 v que o carbonizou.