A Lenda de Abá Ekoteré
Essa lenda, meus amigos, foi contada por meu pai, que ouviu essa história de meu avô, que ouviu de meu bisavô. É mais velha do que eu e você, com nossas idades somadas. É a história de um homem feliz, que teve sua vida arruinada pela inveja. E esse homem chamava-se Abá Ekoteré.
Abá era um índio dos mais belos da sua tribo. O sonho de todos os pais era o de que suas filhas casassem-se com ele. Mas Abá era comprometido com Membira, filha de Yacamim, o pajé e vidente da tribo.
Membira era uma índia maravilhosa, e, juntos, os dois faziam um belíssimo casal. Ela tinha os cabelos longos, e em sua orelha sempre pendia uma flor de laranjeira ou um jasmim, que tornava seu rosto ainda mais vivo e límpido.
Certo dia, Abá e Membira estavam na beira do rio.
- Abá – disse Membira, olhando-o, enquanto ele nadava, apostando corrida com o cardume de peixes que se dissipava sempre que ele se aproximava. – Papai quer ler seu futuro.
Abá sabia que era costume em sua aldeia que os pajés lessem os futuros dos homens e mulheres prestes a se casarem. O pajé, após a vidência, dava-lhes conselhos para que o casamento fosse feliz e durasse para sempre. Ou conselhos para que não se casassem, caso visse que fosse desastroso para alguma das partes.
- Yacamim? – ele perguntou, parando de nadar e indo até a beira do rio. – Não quero que seu pai saiba qualquer coisa do nosso futuro. Digo, ele é seu pai...
- Pensei que falaria isso. – ela disse, tirando a flor que ficara murcha da sua orelha e trocando por outra, que o vento havia derrubado no chão. – E eu disse isso para papai, mas ele insistiu. Disse que você podia ser bom o bastante para mim, mas queria saber se eu seria completamente feliz com você.
- E se descobrir que não teremos um bom futuro? Ele irá proibir nosso casamento?
Abá saiu do lago e sentou-se na beira do rio.
- É o que ele disse que faria. – ela respondeu. Abá olhou-a, confuso. – Por favor, Abá, papai nunca te perdoará se você proibi-lo. É um costume.
- Não com a filha do pajé. – ele rebateu. – Não sei, pelo o menos não agora. Tenho que pensar. Não sei se quero realmente saber do nosso futuro.
- Como não quer saber?! Todos queremos saber o futuro, e é uma dádiva quando um pajé como papai resolve revelá-lo. Ele mesmo sempre se recusou a ler meu futuro. Disse que poderia fazê-lo quando me casasse.
- Não vamos discutir isso agora, Membira. Prometo que amanhã lhe dou minha resposta.
Ele fechou os olhos, caindo novamente no rio. Ficou submerso por alguns segundos, antes de algumas bolhas de ar subirem e Membira sentir as mãos grandes de Abá puxando seus tornozelos. Ela escorregou, caindo no água. Os dois abraçaram-se, dispersando definitivamente o cardume de peixes que insistia em ouvir a conversa.
Acontece que Abaçaí, um ardiloso demônio, foi chamado por Unaité, uma mulher feia e invejosa. Ela odiava ver Abá feliz com Membira, sua irmã mais nova, achando que Abá deveria ser seu. Era uma obsessão crescente, que nascera na infância, quando Unaité descobriu que era apaixonada por Abá. Ela sempre fazia de tudo para ser notada, mas parecia que Abá só tinha olhos para Membira. Ela passara a odiar a irmã desde então, e esse ódio crescente nutriu-se com inveja e com um desejo incontrolável por Abá.
No mesmo dia em que Abá e Membira tiveram aquela conversa e se amaram no rio, durante a noite, Unaité decidiu chamar pelo demônio Abaçaí. Sabia que não era difícil, ainda mais para um espírito insaciável como ele, que tinha prazer em perseguir os índios e os enlouquecer.
Unaité sabia muito bem o que fazer, pois seu pai lhe contava muito sobre os espíritos: por isso, na calada da noite, correu até a beira do rio, onde capturou uma rã. Matou-a, e fez o sangue do animal jorrar numa pequena cuia de madeira, onde acrescentou pétalas de orquídeas e folhas de guaraná. Era a oferenda ideal para chamar Abaçaí. Unaité amassou tudo e deixou a oferenda na beira do rio. Escondeu-se atrás de um arbusto e esperou o demônio chegar.
Foi mais rápido do que ela pensou. A luz da lua ainda era forte e estava no topo do céu quando Abaçaí chegou. Tinha a aparência de um homem alto, forte, grande como uma árvore velha. Tinha os braços grossos como troncos e as pernas longas. Sua cabeça era oval e careca, e seus olhos brilhavam um carmim intenso.
- S-sou eu a dona desta oferenda, Abaçaí. – disse Unaité, saindo de trás do arbusto, tentando parecer corajosa. Abaçaí, que já havia pegado a cuia com a infusão, olhou-a com seus olhos faiscantes, fazendo-a a tremer ainda mais. Levou a cuia à boca, bebendo o líquido com uma satisfação evidente. – T-tenho um favor a lhe pedir.
- És mesmo dona desta oferenda? – ele perguntou, largando a cuia no chão e passando as costas de uma das mãos nos lábios, limpando o sangue que escorria pelos lados. – Pois então tens minha atenção, criatura.
Unaité pôs-se a falar, enquanto Abaçaí parecia ouvi-la com toda a atenção.
- Então queres que eu persiga sua irmã, chamada Membira? – ele perguntou, constatando se o que ouvira era realmente o certo. – E queres que eu a enlouqueça?
- Isso mesmo – ela respondeu. – O mais rápido possível. – Unaité perdera o pavor, e agora passava a falar com mais segurança ao espírito. Suas pernas pararam de tremer e seu coração se aquietou.
- E por que me pedes tal favor? – ele perguntou, parecendo confuso. – Não amas sua irmã?
- Não. Odeio-a – ela respondeu, com convicção. – Ela irá casar-se com Abá Ekoteré. Mas ele deve-se casar comigo, não com ela.
- Entendo... – disse o espírito, com um tom vago, balançando lentamente a cabeça. – Atenderei seu desejo, porém tenho um preço.
- Estou ouvindo.
- Terás que fazer essa mesma infusão durante todas as luas cheias, até o fim de sua vida. Terá de ensinar a sua filha como se faz, e ela ensinará a filha dela, sua neta. Então estarão livres. Aceitas o que te peço?
- Aceito – ela respondeu, sem nem ao menos ponderar sobre o assunto, de tamanha magnitude. – Quando poderás cumprir tua parte no acordo?
- O que acha de amanhã, durante essa mesma hora? – ele perguntou. – Estarei aqui, esperando. Traga-a, invente qualquer desculpa e traga-a aqui. E estarei pronto.
- De acordo – ela respondeu, com um sorriso no rosto. – Farei assim como me manda, e espero que faças também sua parte.
- Não espere nada menos que a perfeição de Abaçaí.
Ela fez uma mesura, concluindo a conversa, e, sem dar as costas ao espírito, esperou que ele desaparecesse na mata.
Então a noite passou e veio o dia. Membira estava apreensiva com a resposta de Abá, e, por isso, resolveu esperá-lo logo cedo, antes que o sol nascesse. Sentou-se no chão, à porta da oca que ele dividia com o irmão mais novo, Caaré.
Caaré foi o primeiro a acordar. Tinha seus doze anos, e saiu da oca com os olhos vermelhos e cansados, os cabelos de pé. Parecia ainda com sono.
- Seu irmão já acordou? – ela perguntou, olhando para Caaré.
- Não, e acho que não acorda tão cedo. – ele respondeu. Depois de um longo bocejo, concluiu – Caçou até tarde ontem. Conseguiu um javali e o deu ao cacique, para que ele dividisse.
- Será que não posso entrar e acordá-lo? – ela perguntou. Era falta de educação entrar na oca de qualquer outra pessoa sem a permissão de ao menos um dos moradores.
- Não tenho nada a esconder. – ele deu de ombros, ainda coçando os olhos. – Sabe se mamãe já preparou a comida?
- As frutas então na cabana de papai. – ela disse, apontando para a grande tenda, onde uma grande variedade de frutas estava disposta em uma esteira feita com fibras de taquara. – Vá rápido, senão as crianças acabam com tudo...
- Crianças... – ele resmungou, como se fosse adulto, andando lentamente até a tenda.
Membira olhou-o desaparecer entre as outras crianças que se deliciavam com a comida, e, só então, entrou sorrateiramente na oca, sem fazer barulho.
Abá dormia tranquilamente, de bruços, a respiração suave. Suas costas eram lindas, assim como todo o resto do seu corpo. Sua silhueta nua era iluminada pelo fraco sol que começa a nascer.
- Abá... – ela chamou, baixinho, mexendo no ombro do homem levemente. – Abá, acorde.
Ele moveu-se na tenda, sem abrir os olhos.
- Abá! – ela disse, dessa vez mais alto. Sacolejou-o com mais força. – Acorde!
Abá abriu os olhos lentamente, ainda sonolento.
- O que quer, Membira? – perguntou, virando-se no chão.
- Decidiu se vai ou não falar com papai?
Ele levantou-se, inspirando forte, e sentou-se, as costas apoiadas na parede da oca.
- Quando posso falar com ele? – ele perguntou, dando um sorriso breve e olhando o semblante da mulher se iluminar. – Se tu achas que é importante, também acho que é.
- Ó, Abá, muito obrigada! – ela disse, beijando-o. – Obrigada, obrigada, obrigada. – disse, enquanto beijava o peito do homem e suas bochechas. – Papai ficará tão contente! Vamos, vamos! Talvez ele possa falar agora mesmo contigo!
Sem reclamar, Abá obedeceu, e, de mãos dadas, os dois saíram da oca, rumando para a tenda do pajé.
Yacamim era um homem magro e curvado. Trajava uma pele de onça, que cobria suas partes baixas, e um cocar com penas de arara vermelha ornava sua cabeça. A tenda tinha cheiro de fumo.
- Bom dia, Yacamim. – disse Abá, fazendo uma mesura. – Membira disse que insistiu para que lesse meu futuro.
- Certamente, meu filho. – ele acenou com a cabeça. – Membira, minhas filha, podes sair agora. Abá, por favor, sente-se.
Membira obedeceu, retirando-se.
Abá também se adiantou, sentando no chão, sobre os pés. Yacamim, então, pegou um ramo de folhas, molhou em uma cuia de água e salpicou o rosto de Abá, passando a folha por seu rosto.
- Sabes que se casará com a mulher mais importante em minha vida, não sabes, Abá Ekoteré?
- Sim, pajé Yacamim.
- E sabes que o que verá aqui ficará entre nós e só entre nós, não sabes, Abá Ekoteré?
- Sim, pajé Yacamim.
- Muito bem... – ele disse. Pegou uma outra cuia, dessa vez com óleo. Besuntou o dedo polegar e passou-o na testa do homem. – Feche os olhos e faça os pensamentos aflorarem. Deixe-os livres, como araras, voando pelo céu sem que ninguém os perturbe.
Abá obedeceu, e tentou fazer o que Yacamim falava, apesar de não saber muito bem como fazê-lo. Pensou em tudo e em nada. Deixou que os pensamentos viessem-lhe em uma torrente forte, modificando-se sempre.
Yacamim também tinha os olhos fechados, e cantarolava uma música em uma linguagem diferente da que falavam na aldeia.
De repente, Abá sentiu em sua mente uma torrente de pensamentos que não eram seus: viu um homem alto e careca, com os olhos cor de sangue; viu Unaité, irmã de Membira, e ela estava sorrindo, feliz; viu Membira, e ela parecia estranha: tinha falhas nos cabelos, como se alguém os tivesse arrancado, e gritava na madrugada, maldizendo aos homens e às crianças, enquanto Yacamim tentava segurá-la; viu novamente o homem de olhos cor de sangue, e dessa vez seus lábios estavam tingidos de vermelho, escorrendo um líquido que ele bebia de uma cuia de madeira.
Os pensamentos se dissiparam com a mesma velocidade com a qual apareceram, e Abá abriu os olhos, aterrorizado.
- O que viu? – perguntou Yacamim, também abrindo os olhos. Não parecia ter passado sequer um minuto: as crianças ainda gritavam do lado de fora, brigando pela maior parte da comida, enquanto as mães tentavam dividi-la igualmente.
- Não conseguiu ver? – perguntou Abá.
- Não posso ver o futuro das pessoas, Abá Ekoteré; só você pode. Posso apenas interpretar as imagens, a partir do que você me fala. O que viu?
- Vi Membira... – ele disse, respirando rapidamente. – ...estava deitada em uma rede, e sua barriga parecia inchada, como se estivesse grávida.
- Bom. O que mais?
- Me vi, com uma criança no colo. Estava segurando-a, balançando para que parasse de chorar, enquanto o senhor e Membira olhavam-me, sorrindo.
- O que mais?
- Vi sua filha mais velha, Unaité. Ela estava nadando no rio, com o bebê que eu ninava nos braços.
- Mais alguma coisa?
- Vi a lua mais linda da minha vida; vi-me pegando um peixe e caçando uma onça.
Tentava parecer convincente em todos os detalhes, sem que sua voz parecesse trêmula ou soasse falsa. Não podia contar a verdade para Yacamim. Não aquela verdade.
- Nada mais?
- Nada mais.
- Eis meus conselhos... – ele disse, olhando fundo nos olhos de Abá. – ...cuide muito bem de minha filha e de meu neto, mesmo que tenha de lhe custar a vida. E tenha cuidado com Unaité. Ela é minha filha, e sei do que ela é capaz. E também sei que ela tem afeto por você, talvez até mesmo amor.
- Aceita que me case com Membira?
- O futuro de vocês será brilhante, meu filho. – ele disse, levantando-se. – E desculpe se pareci irritante ao insistir para que lesse seu futuro. Era necessário.
- E me perdoe por não aceitá-lo de imediato. – Abá respondeu, também se levantando. – Até outra oportunidade, Yacamim.
- Que Tupã esteja sempre contigo.
Abá saiu da tenda de Yacamim, ainda atordoado com os pensamentos.
Membira esperava-o, ansiosa, sob a sombra de uma mangueira, andando de um lado para o outro.
- Então, como foi?
- Bom... – disse Abá. – Ele disse que teremos um ótimo futuro.
Ela sorriu, com lágrimas nos olhos, e o abraçou. Yacamim observava tudo ao longe, como se soubesse que Abá Ekoteré escondia alguma coisa.
Nesse mesmo dia, durante a tarde, Unaité decidiu colocar o seu plano em prática. Membira estava sozinha na beira do rio, refletindo sobre como seria seu futuro com Abá, e escolhendo as melhores flores que o vento havia trazido para que colocasse em sua orelha.
- O que faz sozinha, irmã? – perguntou Unaité, aproximando-se, cautelosa o suficiente para não levantar suspeitas. – Está triste?
- Muito pelo contrário, irmã. Nunca estive tão feliz! – ela respondeu. – Papai permitiu que me casasse com Abá.
- Oh, é uma ótima notícia. – ela disse, tentando forçar um sorriso. – Então agora é mesmo uma coisa séria, não é?
- Sempre foi sério, Unaité.
- O que acha de um último passeio com sua irmã, antes que tenha de se devotar ao seu marido até a morte? – ela perguntou, puxando a irmã para que esta se levantasse. – Vamos dar uma volta pela floresta. Quem sabe não achamos mais flores ou alguma coisa que valha a pena?
Membira concordou, e, juntas, as duas se embrenharam pela floresta, procurando por flores e penas de aves. Passaram muito tempo na floresta, até a noite chegar.
- Temos que voltar à aldeia, Unaité. – disse Membira, vendo a lua brilhante e percebendo que ficara tempo demais fora. – Abá e papai devem estar preocupados conosco.
- Não se preocupe com isso, Membira, avisei a eles que sairíamos. – ela deu um sorriso convincente. – Agora fique aqui, sentada, e espere.
- O que está planejando?
- Quero lhe fazer uma surpresa, antes que se case. – ela disse. – Fique aqui e não se mova. Volto num instante.
- Ora, mas o que está fazendo? – ela perguntou, sorrindo.
- É surpresa, irmã!
Dizendo isso, Unaité saiu rapidamente, sumindo entre os arbustos.
Membira sentou-se no chão, na beira do rio, olhando os peixes que ainda estavam acordados. Colocou os pés na água, balançando-os e esperando Unaité voltar.
Foi o tempo de um instante: Membira ouviu um barulho às suas costas, como o farfalhar de folhas secas quando são pisadas por alguém.
- Unaité? Já voltou?
Virou-se, sorrindo, mas não era Unaité. Era um homem alto e forte, careca, com as pernas e braços grossos. Seus olhos eram vermelhos e cintilantes.
- Quem é você? – ela perguntou, levantando-se e tentando enxergar o rosto do homem, escondido pelas sombras. – Abá?
- Abá Ekoteré não está aqui. – disse Abaçaí, sua voz grossa e fria. – Sou o espírito Abaçaí, e sinto-me faminto.
Abaçaí avançou, pegando Membira pelos cabelos. Então o corpo do demônio transformou-se em fumaça, e a fumaça entrou pelas narinas e pela boca de Membira. Era uma fumaça negra, que se movimentava ao seu bel-prazer. Então, com a mesma velocidade com a qual entrou, a fumaça saiu do corpo de Membira, e Abaçaí tomou novamente a forma de um homem.
- Agora volte para sua aldeia, Membira. – Abaçaí disse-lhe, afastando-se.
Membira obedeceu, os olhos estáticos, olhando para um vazio conhecido apenas por ela.
Unaité permanecia atrás de um arbusto, observando tudo. Segurou Membira por um braço, e, juntas, as duas voltaram para a aldeia.
Os dias se passaram e, apesar do ocorrido, Membira parecia perfeitamente normal. E Unaité estava cada vez mais impaciente, pensando que Abaçaí não fizera nada do que prometera. Mas, mesmo assim, durante todos os dias em que durou a lua cheia, Unaité fazia a infusão e a oferecia à Abaçaí, que a bebia de bom grado.
- Espere mais, criatura. – era o que ele dizia. – Tudo será resolvido em seu tempo.
Unaité esperou, e tudo foi resolvido, assim como prometido.
Alguma coisa acontecia com Membira, e ela não sabia dizer o que era. Quando lhe perguntavam sobre o passeio com Unaité, Membira respondia que fora muito bom e produtivo, mas na verdade ela não lembrava muito bem do que acontecera. Lembrava-se apenas de Unaité falando-lhe sobre uma surpresa e pedindo para que esperasse. Depois disso, nada mais. Mas não ousava comentar isso com ninguém, pois não queria que fosse tomada por louca.
E, durante uma madrugada, Membira pensou que alguma coisa acontecia com seus cabelos: pareciam vivos, como se cobras estivessem no lugar dos fios, e algum ser maligno andasse em sua cabeça. Membira via vultos, almas e aparições. E como gritava! Gritou alto o bastante para que toda a aldeia acordasse. Segurava os cabelos com força, arrancando-os desesperadamente e os jogando no chão, e via as cobras contorcendo-se, prontas para darem um bote em qualquer parte dela que pudessem alcançar.
- Socorro! – gritava, desesperada, enquanto corria, como se um enxame de abelhas estivesse voando atrás dela. – Papai! Abá! Socorro!
Todos estavam acordados, e Yacamim foi o primeiro a agir. Correu até a filha, tentando segurá-la, enquanto ela se debatia.
- Por que não me ajudam?! Malditos! Malditos sejam todos vocês!
Maldizia às mulheres e às crianças, que observavam tudo silenciosamente. Yacamim, apesar de velho, tinha a força de um jovem, e segurava-a, lágrimas rolando-lhe pelos olhos.
Abá acordou, assustado, saindo da oca. Logo atrás, vinha Caaré.
- O que está acontecendo, irmão? – perguntou o garoto, olhando para Membira.
- Ela está louca! – gritou Unaité, correndo até Abá. Abraçou-o, fingindo nervosismo. – Por favor, Abá Ekoteré, se realmente ama minha irmã, acabe com isso!
Abá correu até Membira, e lembrou-se da visão que tivera na tenda de Yacamim. Estava realmente acontecendo.
- Acalme-se, Membira! – ele disse, correndo até a mulher e segurando-a. Ela ainda tinha as mãos nos cabelos, e os arrancava freneticamente, numa fúria insana.
- Há cobras... no meu cabelo, Abá... por favor, mate-as! Mate-as!
- Não há nada em sua cabeça, Membira. – ele sussurrou. – Acalme-se. Nada pode te ferir. Nem cobras, nem abelhas, nem ninguém. Estou aqui para te proteger.
E ela se acalmou, lentamente, abraçando-se à Abá com força, chorando copiosamente. Assim que as coisas se tranqüilizaram e todos voltaram a dormir, Abá levou-a para dentro da oca.
Durante a manhã do dia seguinte, todos na aldeia comentavam. Nem mesmo Yacamim era poupado de comentários maldosos.
- Dizem que ele nunca deu boa educação às filhas.
- Dizem que trata Membira como se ela fosse um homem.
E assim se seguiram os comentários. E Unaité ficava cada vez mais feliz com eles, ainda mais quando falavam sobre Abá.
- Ele não deve se casar com Membira.
- Ela está louca!
Membira, depois daquele incidente, não saiu mais da oca, até sua morte, que aconteceu três dias depois. Ela via espíritos, gritava maldições e parecia uma outra pessoa. Dizia que os demônios mandavam que fizesse coisas que não queria, coisas que insultariam a honra de Yacamim e Abá. Mas não podia dizer não. Eles a obrigavam.
O dia da morte de Membira fora o mais triste que Abá Ekoteré já presenciara. Até mesmo Tupã parecia triste, e o céu tinha uma cor cinza e o vento, um zumbido de morte.
Durante todo o enterro, Unaité permanecera abraçada à Abá, chorando falsamente e sorrindo por dentro, por ver que finalmente o caminho estava livre.
Muitos meses de tristeza se passaram e, durante todo esse tempo, Unaité cumprira com o seu combinado. Durante todos os dias de lua cheia, ia até a beira do rio e oferecia a bebida para Abaçaí, que a bebia sempre com um sorriso no rosto.
Depois de todo o tempo passado, Yacamim decidiu falar com Abá sobre as visões que ele tivera.
- Parece que seu futuro não é o mesmo que me contou, não é?
- Não podia falar a verdade, Yacamim. – disse, com a cabeça baixa, as lágrimas formando-se em seu rosto. – Você iria me odiar para o resto da vida.
- O que te faz pensar que já não lhe odeio? – sua voz era seca. – Você mentiu para mim, Abá Ekoteré. Agora faça algo para se redimir e me fazer feliz. – ele colocou a mão no ombro de Abá. – Sei que é uma ótima pessoa. Case-se com Unaité e a faça feliz.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos.
- Me dê um tempo para pensar. – foi a única coisa que Abá pôde dizer.
E Abá pensou, com todas as suas forças. E acabou por decidir-se que aquilo era o mais acertado a se fazer.
- Não vai ler meu futuro? – ele perguntou à Yacamim, depois de lhe contar sua decisão.
- Apesar de continuar achando que é um grande homem, perdi toda a confiança que tinha em ti. Tu mentiste uma vez, podes mentir novamente. Largo tudo nas mãos de Tupã.
No dia do casamento, Unaité estava linda. Na verdade, nunca fora tão linda quanto Membira, mas seus cabelos estavam mais longos e lisos, e suas pálpebras e toda a volta dos olhos estavam pintados de vermelho e branco; Abá também estava bonito, e tentava parecer mais feliz do que realmente estava. Nunca conseguiria esquecer Membira, mas sabia que Unaité lhe seria uma esposa dedicada.
O casamento foi consumado no mesmo dia, em uma tenda que Abá construíra para que os dois compartilhassem. E Unaité soube, nesse dia, que uma semente fora plantada em seu ventre.
Passou-se muito tempo desde então, e Unaité continuava a cumprir o que havia combinado com o espírito maligno que matara sua irmã. Durante todas as noites de lua cheia, com uma desculpa qualquer, saía, mesmo grávida, para fazer o que Abaçaí havia lhe ordenado.
- Adoro esse banquete, criatura. – dissera ele, certa vez, antes que se retirasse. – E ficaria muito bravo se você esquecesse de fazê-la para mim.
Unaité sabia daquilo.
Numa noite, após Unaité ter concebido a filha do casal e esta estar com quase dois meses, os dois tiveram a melhor noite de suas vidas. Foi maravilhoso, e pela primeira vez Unaité sentiu que Abá esquecera-se completamente de Membira.
Sorrateiramente, e depois de se certificar que Abá havia dormido, Unaité levantou-se, andando lentamente até a floresta. Precisava fazer a oferenda para Abaçaí. Mas ela não esperava que Abá acordasse e a visse caminhando mata adentro. Confuso, Abá decidiu segui-la. Afinal, o que ela haveria de fazer na mata àquela hora?
Escondeu-se atrás das árvores, seguindo Unaité. E viu quando a mulher pegou o guaraná e subiu em uma árvore para tirar duas pétalas de uma orquídea. Levava uma cuia de madeira na mão, e amassou as folhas e as pétalas dentro, misturando com alguma coisa que, ao ver dele, parecia sangue.
Então uma criatura apareceu. A princípio, pensou ser um homem, e Abá concluíra que Unaité estava traindo-lhe com outro. Entretanto, com o passar dos minutos, viu que não era nada disso. Os dois conversavam, mas não se encostavam. Unaité referia-se a ele como Abaçaí.
Abá ouvira muito sobre Abaçaí: quando era vivo, seu avô contava-lhe histórias sobre como aquele demônio enlouquecia os índios, e sobre como se fazia para chamar-lhe. Então tudo aflorou na mente de Abá. Havia sido Unaité que matara Membira!
Abá sumiu entre as árvores rapidamente, voltando para a oca. Deitou-se, e fingiu dormir. Tinha de preparar alguma armadilha. Tinha que fazer Unaité pagar pelo que fizera.
Durante a noite do dia seguinte, Abá permaneceu acordado, abraçando Unaité com força. Ela tentava se desvencilhar sem que fizesse barulho, mas, cada vez que tentava, Abá mexia-se, dando a entender que acordaria.
- O que está fazendo? – ele finalmente perguntou, depois da décima tentativa frustrada de Unaité tentar sair dos braços dele.
- Tenho que ir lá fora – ela sussurrou.
- Não, você não vai. – ele olhou-a friamente. – Já sei de tudo, Unaité. Vi quando falou com Abaçaí, e não vou permitir que continue com isso.
Unaité pareceu perdida por um momento.
- Do que está falando? – ela perguntou, forçando um sorriso.
- Você sabe do que falo. – ele respondeu secamente. – Agora fique aqui e não saia. Vamos dormir.
Unaité tentou desvencilhar-se mais uma vez, desesperada.
- Irei gritar se não me soltar!
- Se gritar, te mato – ele disse, sem uma gota de remorso ou pena na voz. – Me obedeça.
Ela estremeceu, e ficou com os olhos abertos durante toda a noite.
Enquanto isso, Abaçaí corria pela beira do rio, procurando por sua oferenda. Não a achou, e enfureceu-se. Nessa madrugada, segundo alguns índios, pôde-se ouvir um grito ensurdecedor de dentro da floresta, que acordou toda a aldeia. Unaité chorava, amedrontada.
Não demorou muito para que a mulher tivesse o mesmo fim de Membira. Mas, diferente da irmã, Unaité não enlouqueceu. Algum tipo de doença tomou conta do corpo dela e de sua pequena filha, que mal nascera. Os dois corpos foram enterrados no mesmo buraco, depois que o próprio Yacamim cavara-o sozinho, utilizando-se apenas das mãos.
Dizem que Abá Ekoteré nunca mais foi o mesmo de antes: andava sempre triste pelos cantos, se alimentava mal e não caçava mais. E quanto à Yacamim, este continuara com seu trabalho, cada vez mais cabisbaixo. Junto ao velho, Caaré passou a aprender os segredos da vidência e das curas.
De tanta dor, Abá Ekoteré decidiu dar cabo da própria vida. Assim, em uma noite de lua cheia, jogou-se no rio, e inspirou a maior quantidade de água que pôde. Seus olhos fecharam-se lentamente, e ele sentiu uma enorme paz, antes que fosse chamado por Tupã.
Dizem que, no dia da morte de Abá Ekoteré, Abaçaí observava tudo, com certa satisfação no olhar.