Punição Divina
O sol já estava se pondo no deserto quando ele a encontrou. Aquela era talvez a melhor hora de todos os dias, mas não pelo pôr-do-sol. De fato, esse evento se torna monótono para um nômade daquele quase eterno mar de areia.
Aproximadamente cinco anos atrás havia decidido se isolar do mundo o máximo possível. Tornou-se uma espécie de peregrino que buscava alguma iluminação pessoal. Essa busca era um tanto estranha para alguém como ele, pois era ateu. Não o ateu vulgar que apenas crê na descrença do divino, mas um ateu agnóstico que possui provas concretas da existência Dele, porém não crê em sua influência na vida mortal.
Bem ali em meio as suas longas viagens entre os enormes oásis povoados do deserto ele a encontrou. Nua. Sua pele frágil e morena possuía uma beleza intensa recém castigada pela forte luz do sol. O que primeiro chamou a atenção nela foram as enormes asas, negras como de corvos, que cobriam suas costas. Ela era um anjo, ele estava quase certo disso.
Agora, já de noite, o andarilho havia abrigado aquela beldade alada - e de cabelos tão negros e belos quanto suas asas – em sua tenda que havia armado alguns minutos atrás. Contemplava com seus olhos azuis obscuros os detalhes mais sutis da face dela. Agora ele tinha certeza, era realmente um anjo.
Aos poucos a donzela alada se despertava, abriu os olhos com calma e observou tudo a sua volta, notou o andarilho de aparência jovem e ergueu seu tronco, sentando-se frente a ele. O manto que a cobria caiu por cima de seu colo descobrindo sua frente nua, também deixando à mostra parte de sua virilha e coxas. O nômade observou com rápida astúcia as sinuosidades daquele corpo, desde os seios que caberiam com precisão às experientes carícias de sua mão até aquelas roliças e rígidas coxas. Possivelmente ela era um querubim.
Ele a olhava com certa frieza apesar da situação, qualquer outro homem estaria vislumbrado com aquela ninfa, já cedendo aos extremos desejos de abraçá-la, beijá-la, afagá-la, amá-la, protegê-la... mas não ele. Seu coração era como um pedaço oco de granizo em brasa, seu olhar era pura indiferença.
A donzela não parecia sequer notar sua própria nudez, estava incomodada com algum sentimento estranho, na verdade uma necessidade. Percorreu sua língua pelos lábios ressecados e ao fazê-lo o nômade percebeu sua aflição. Ele ergueu e balançou um cantil e o simples barulho da água despertou nela um instinto que a fez pegar o recipiente da mão dele e derramar o líquido em sua boca. Pela primeira vez ela sentiu e saciou a sede. Enquanto bebia sentia também pela primeira vez a água escorrer por sua garganta e revestir seu estômago, essa sensação era totalmente nova e inigualável. O líquido transbordava de sua boca e era derramado em seu corpo fazendo-a parecer uma nereida em seu habitat natural.
Enquanto testemunhava aquela cena o nômade sentiu algo em seu peito, como um pequeno arranhão em seu oco granizo ígneo interior, similar a uma leve pontada. Nesse momento ela o encarou e pela primeira vez em muitos anos o nômade desviou o olhar acanhado. Sentiu-se um pouco irritado por não compreender seu acanhamento, mas logo esqueceu isso, pois havia perdido seu olhar nos lábios da donzela que estavam agora umedecidos. Notou que eles eram carnudos e providos de uma cor rubra muito intensa. Não pensou muito para dizer:
- Seu nome será Rouge.
Falava no idioma celestial, um vestígio de seu passado iluminado, uma incoerência com seu presente mortal desprovido de humanidade. A donzela se espantou ao ouvir o dialeto proibido para mortais, pouco se importou com a única palavra que não compreendeu em meio à afirmativa decisiva dele, apenas queria entender como ele sabia aquele idioma.
- Quem é você? Com que direito ousa me batizar? – sua voz conseguia ser delicada ao mesmo tempo que severa.
- Fui um de seus semelhantes em outra vida, me chame de Lucadiel. – disse ele enquanto a encarava novamente com frieza. – Não estou batizando você, mas precisa de um nome novo, pois não deve se lembrar do seu.
Ela até pensou em dizer seu nome, mas se deu conta de que realmente não lembrava de nada antes de ter acordado ali. Sabia que era um anjo, lembrava-se do idioma celestial falado pelos seres superiores, e nada mais. O observou com seus olhos escuros, notou os cabelos castanho-claros e a pele morena dele, sinais de muitos dias vividos no deserto. Procurou algo nele que talvez pudesse explicar tudo aquilo, mas seu raciocínio foi cortado pela voz do nômade.
- Entendo sua confusão, você era um anjo, algo aconteceu e você “caiu”. Quando um anjo torna-se mortal perde suas lembranças de quando era uma entidade celeste, incluindo seu nome. Também já fui um anjo, também “cai”...
- Então... eu dei as costas ao meu patrono divino? – agora a voz dela era como a de uma criança indefesa, demonstrava curiosidade e ressentimento.
- Não sei exatamente, pois essa não parece ter sido sua situação. Quando “caí” não perdi minhas asas, na verdade as arranquei. Para que um anjo “se jogue”, como eu fiz, é necessário que ele arranque suas asas. Já que você continua com suas asas, porém agora enegrecidas, talvez você esteja aqui apenas como punição, mas não tenho certeza disso.
Lucadiel falava com eloqüência e tranqüilidade, precisava se mostrar simpático apesar de sua indiferença. Ela conseguiu cativá-lo de alguma forma e ele precisava entender como.
“Possivelmente tudo isso é obra Dele.” - pensou consigo - “Mandando um anjo de forma feminina para que eu me apaixone e sofra por amor, como já fiz com muitas mulheres em meu pouco tempo de vida mortal.” Mas para Lucadiel não importava, tinha outros planos para ela, iria corrompê-la.
- Você cuidará de mim? – Rouge interrompeu seus pensamentos. - Preciso de alguém que me ensine sobre a vida mortal.
- Claro, cuidarei de você... – ele a olhou maliciosamente enquanto acariciava sua face com a intimidade de um amante.
Rouge não fazia idéia do que poderia ter feito quando anjo que provocasse ira divina suficiente para ser punida de tal maneira, mas não se interessava pelos motivos, apenas aceitava sua punição como uma boa devota. Sentia que sua missão na Terra era aprender uma lição de extrema sabedoria e finalmente regressar para sua forma celestial.
Era estranho para ela como tudo estava acontecendo; pior, era confuso. Agora como mortal possuía incontáveis sentimentos que não conseguia compreender ao todo. Enquanto recebia as carícias de Lucadiel não conseguia encará-lo e seu corpo era tomado por um extremo calor. Não o calor do deserto, mas um calor interno, em seu corpo, em sua face. Deu-se conta de que estava semi-nua e instintivamente cobriu seu tronco com o manto que antes a acobertava. Pela primeira vez sentiu vergonha, baixou a cabeça para que seu companheiro não pudesse ver seu rosto.
O nômade mais uma vez demonstrou toda sua malícia com um sorriso cruel acompanhado de um olhar manipulador, em seguida ergueu o rosto dela para olhá-la nos olhos. Sabia que o ponto mais vulnerável de uma pessoa, quando envergonhada, são os olhos, principalmente se a pessoa for do sexo oposto.
- Aos poucos você está aprendendo a sentir. – a voz dele passou da frieza para a amabilidade em instantes, continuou: - Sentimentos são como catarro, algo que surge inesperado dentro de você. Tem que escolher entre aceitar e sorver ou rejeitar e cuspir. Eu cuspo e você também cuspirá. Confie em mim, é melhor.
Rouge realmente confiava e ele lia isso em sua expressão facial. Aos poucos Lucadiel concretizava seu plano, entendia muito sobre os assuntos do coração. Se o primeiro passo para o amor é a amizade então o segundo, e certamente mais difícil, é a confiança. Já o terceiro passo era muito fácil: sedução.
Ele se aproximou da donzela sentando ao seu lado e a envolvendo num abraço enquanto recostava a cabeça dela em seu ombro. Indefesa e extremamente vulnerável ela cedia às carícias dele. Lucadiel deslizava os dedos pela face de Rouge com sutileza até chegar aos lábios, estes tocados com grande lascívia. Sentiu que ela corava e pensou em beijá-la, mas não o fez. Decidiu esperar um pouco sem saber exatamente por que.
Lucadiel estava contente. Agora tinha certeza que ela havia sido enviada com o objetivo de conquistá-lo, e se fosse para acontecer então ele também a conquistaria. Deus o puniria, mas também seria punido ao perder o amor de mais um precioso filho e devoto. Sabia que aquilo causaria extremas dores Nele.
Rouge seria dele, tal como ele seria dela, mas de uma forma diferente. Ela o aceitaria do jeito como ele é. Lucadiel a moldaria para que ela fosse como ele bem quisesse, mas tudo que queria era a descrença dela. Não queria que ela se tornasse uma atéia vulgar, dessas pessoas que crêem na descrença do divino, mas uma atéia agnóstica, como ele, que possui provas da existência Dele e não acredita em sua influência na vida mortal. Rouge perderia sua fé como Lucadiel perdeu em tempos passados. Sua vingança seria perfeita.