Depressão

David entrou em seu quarto, trancou a porta e sentou-se na cama. Seu corpo era leve, mas tinha peso suficiente para afundar o colchão vagabundo até a grade de madeira. A colcha verde-musgo estava amarrotada por seus glúteos magros e cheio de ossos. Repentinamente começou a chorar e sussurrar:

— E não mereço... eu não mereço... eu sou um merda... um merda! QUE PORRA!

O jovem de vinte um anos aos prantos, sentia lágrimas quentes escorrerem por seu corpo frio. Aos poucos ele começou a sentir mais que isso. Uma presença vaga se aproximava.

Ele se levanta e dirige-se em direção à cômoda. Ele abre a gaveta com violência o suficiente para arrancar lascas de madeira velha do fundo do móvel. David permanece paralisado por um instante, apenas olhando para o que está dentro da gaveta. Uma faca com cabo de pedra. Ele pega a arma que brilha ao sair da gaveta. Ele volta pra cama, e dessa vez se senta do outro lado, amarrotando ainda mais a colcha. Ele segura a faca e a ergue um pouco acima de sua cabeça. Fica mais um segundo imóvel e depois começa a descer a lâmina no ar vagarosamente até posicioná-la sobre seu pulso pálido feito algodão e cheio de veias. David sente a tal presença aumentando. A sensação é agonizante, quase insuportável. Seus olhos estão salgados e seu corpo gelado treme. No ápice de agonia ele vê na sua frente a imagem de um ser dourado. Ele brilha feito ouro. Um anjo com asas brancas compridas, um corpo magricela e infantil, todo nu e sem nenhum órgão genital.

O anjo sussurra com uma voz de criança, doce e meiga:

— Suicídio...

O anjo fica em pé, parado, na frente de David. Se aproxima como se quisesse beija-lo. E espantosamente, o anjo é surpreendido com uma facada no peito. Ele cai no chão e permanece ali agonizando, com a abundancia de um sangue negro brotando de seu peito dourado feito a água que brota na nascente de um rio. Ele grita:

— Humano maldito!

— Pensa que eu não sei sobre você? — David berra agressivamente para o anjo — Anjinho filho de uma puta.

O anjo soltou um gemido de dor. Sua aparência agora já não era tão infantil. Parecia uma idoso com corpo de criança. Corpo que marcava o centro de um círculo de sangue negro e espesso. O sangue contrastava com o piso amarelo do quarto, e onde havia respingos formava figuras inidentificáveis. David sorria.

— Sei que você é um anjo suicida. — David começa um discurso agora — E sei que um anjo suicida, é uma criança que por algum motivo se matou. E essa criança, automaticamente se torna um anjo com uma mentalidade madura e formada. Usando a sua capacidade intelectual, esse anjo tem duas opções a escolher. A primeira é ajudar pessoas a não cometerem o seu mesmo erro e se suicidarem, e a outra opção é se revoltar contra a humanidade e se vingar influenciando as pessoas ao suicídio. — deu uma pausa — E não é tudo. Sei também que qualquer anjo que escolha se vingar tem um ponto fraco, — fez alguns segundos de silêncio e continuou — o coração.

O anjo começou a rir enquanto se debatia no próprio sangue. Quanto mais ria, mais sangue lhe jorrava do peito.

— Humano filho de uma puta! — e agora o anjo tinha uma voz grave e distorcida. — Quem é você?

David deu um leve sorriso seguido de uma risada quase feita com a boca fechada. Ele respondeu:

— Sou um caçador de seres sobrenaturais malignos, ou seja, eu sou aquele que vai acabar com você pra sempre.

O anjo começou a gargalhar, enquanto se lambuzavam de sangue, que agora lhe escorria pela boca além do peito. O anjo parou de rir e disse:

— Vejo que você sabe um pouco sobre os anjos suicidas, — deu uma pausa — mas creio que não é o suficiente — soltou uma gargalha como satanás faz nos filmes e seriados de tv...

David ficou em silêncio observando o anjo. Sem prévio aviso o anjo tirou a faca do peito com a mão direita — e agora não parecia sentir mais dores, talvez não estava ligando mais para elas —, ficou em pé gargalhando e sangrando abundantemente, de um forma tão surreal molhava as paredes, o chão e o próprio David.

David não se importou com o sangue alheio em seu corpo, se sentia vangloriado por ser banhado com o sangue do inimigo.

— É tenho que assumir, vou morrer pela segunda vez hoje, — continuou o anjo dourado, que já estava negro por causa do sangue que lhe cobria — e dessa vez vou para o inferno, mas acho que você esqueceu de alguma coisa sobre a minha espécie. Adeus.

O anjo se desmanchou instantaneamente e no local onde estava, sobrou apenas poucas penas de suas asas e uma roda de sangue.

David disse para si mesmo:

— Ele está enganado. Pensa que eu não sei que agora vou morrer também. Eu tive minha vingança e gozei ao ser banhado pelo sangue do inimigo. Agora a ciclo estará completo. Todo ser humano que mata um anjo, seja ele bom ou mau, morrerá seguidamente, mas eu aceitei este destino no momento em que parti a busca do anjo que matou meus pais. Não esqueço do dia em que eles se jogaram pela janela, sem motivo algum. Eu lembro deles pulando. Eu tentei impedir, mas... — ele suspirou — Agora, o que tenho a fazer é me despedir desse mundo.

Ele se sentou na poça onde o anjo havia morrido. De seus bolso ele tirou um gravador ligado. Ele o desligou e o guardou em baixo de um piso solto no chão. Ele se deitou e sentiu o seu corpo se desfazer lentamente. Quando a escuridão tomou conta de seu olhos ele ouviu uma estranha voz. A princípio essa voz parecia ser feminina e lhe disse muita coisa sobre ele mesmo e por fim deu uma sentença com um timbre grave e totalmente masculino:

Você não vai nem para o paraíso e nem para o inferno. A partir de agora você passará toda a sua vida em um mundo de rancor. Um local onde não existe nem bem e nem mal... Um lugar sem dono, onde ninguém é de ninguém e todos são de todos.

A voz foi desaparecendo aos poucos, como um eco nas montanhas. Lentamente David começou a enxergar, e ao mesmo tempo sentia seu corpo sendo despido, apalpado, perfurado, apertado e até mordido, mas não sentia dor alguma. Foi quando percebeu estar no meio de uma multidão infinita que praticava uma espécie de orgia selvagem. O local era de um tom avermelhado e nada era concreto, não era possível definir o que era chão, o que era teto e o que era parede, era apenas vermelho.

David sentia uma melancolia insuportável que se misturava aos prazeres da carne, ao qual estava submetido. Ele havia sido um caçador de seres sobrenaturais malignos. Ele ajudou a expulsar muitos demônios do planeta terra, mas anjos apenas um.

O fim de David é passar o resto de sua vida fazendo sexo insanamente com homens, mulheres, animais, anjos e demônios. Ele se julga injustiçado, mas aceita seu estado. Afinal ele já sabia que o seu fim seria cruel. Mas uma frase lhe que seu pai falava, lhe permanecia em mente, “Nem todo povo tem o governo que merece”. Na verdade nem David sabia o que ele merecia.