O TRIBUNAL
Há muitas e muitas translações, existia um grandioso império às margens do Mediterrâneo, cuja capital era Roma. Durante seu apogeu, ascendeu ao trono um jovem militar por nome Cipriano.
Seu antecessor morrera de uma grave e rara infecção pulmonar e não deixara herdeiros. Cipriano era o primogênito do influente senador Célio, que, com imenso empenho junto ao Exército, conseguiu apoio majoritário para a escolha de seu filho para governar o império.
Nos primeiros meses, o Imperador deliciou-se com fartos banquetes, belas concubinas e jogos militares nas arenas de Roma. Contudo, com a gélida brisa que anuncia o inverno, pairou sobre seu palácio um rumor de guerra avassalador. Inúmeras hordas vindas do Oriente sob o comando de tropas partas invadiram a península itálica, arrasando povoados e derrotando comandantes romanos.
Próximo a Roma, o General inimigo, Artamedes, exigiu a presença de Cipriano na frente de batalha para negociações. Após consultar seu pai, o Imperador visitou o Panteão de Roma e foi ao altar de Marte, o deus da guerra. Lá chegando, disfarçado no meio da multidão e coberto por um capuz, ele prostrou-se diante do altar e rogou fervorosamente. Momentos depois, um assovio ao longe o incomodou; pensou ser seu pai e então se levantou. Dirigiu-se a porta lateral do Templo e não avistou ninguém. Ouviu outro assovio, ergueu sua cabeça e viu uma águia pousada numa árvore; uma ave imponente de peito branco e dorso negro, que o fitava hipnoticamente. O pássaro pôs-se a voar em direção aos portões da cidade, sendo rigidamente observado e seguido por Cipriano.
Adentrando um bosque fechado, a águia levava sob seu poder o Imperador, que, cinco passos fora da cidade, foi ao chão. Depois de minutos inconsciente, ele se deparou com uma cena incompreensível: uma enorme sala branca, um círculo em um nível abaixo do piso de mármore e grandes totens quadrados, largos e maciços, formando uma roda dentro do círculo. Cipriano desceu os cinco degraus até o nível abaixo e, tocando um dos totens com as mãos, viu que eram cinco e tinham sua altura. Neste momento, um trombeta soa; o mandatário romano se assusta e cai de joelhos no centro do círculo. Um tropel de animais adentra a sala por uma passagem ofuscada por uma fortíssima luz.
- Basta, silencio! Saiam, aguardem lá fora. O homem será julgado em instantes! – avisa um imenso leão, já dentro do círculo.
A visão assustadora do felino bramando perturba o monarca, que permanece ajoelhado e em pavor. Apenas três animais acompanham o leão no local, se acomodando sobre os totens assim que percebem o humano presente. O silêncio imperou por alguns minutos, até a águia que guiou Cipriano rompe-o com imponência:
- Meus irmãos, nós teremos agora a valiosa oportunidade de mudar o curso da história do universo.
As palavras do pássaro iniciaram a reunião, que era composta pelos magnânimos representantes das cinco classes em que se dividiram os animais: a Abelha, pelos insetos e invertebrados; a Serpente, pelos répteis e anfíbios; a Águia, pelas aves e o Leão, pelos mamíferos. O quinto elemento, líder da audiência, fez pairar novamente o silêncio ao adentrar a sala. Vestido com uma túnica branca e, auxiliado por uma bengala trazida na mão esquerda, o Chimpanzé andava lentamente e totalmente ereto. A essa altura, o Imperador já não apresentava pavor, mas sua mente estava em estado de ebulição dada a circunstância em que se encontrava.
- Felino; qual é a acusação contra o réu? – dirigiu-se o principal jurado ao Leão.
- Governa um poderoso império terrestre, que massacra tudo em nome da ambição; desde a terra onde pisa até os poderosos ruminantes que escraviza! – resumiu o solicitado.
Impaciente com a tranqüilidade do Chimpanzé, a Serpente arrastou-se até Cipriano e, intimidando-o com seu bifurcado músculo lingual, berrou a seus companheiros:
- Senhores, eu não morri sob os pés de um soldado mongol para ver a raça humana nos avassalar! Vamos, Símio, condene-o!
O nobre romano temia pela vida e pela sanidade mental enquanto se ajeitava no centro do pátio, após o ataque do réptil.
- Mamba, controle seus impulsos. Compreendo sua repulsa, mas essa é uma audiência justa! – assegurou o Chimpanzé – Agora é a sua vez, homem; a acusação aguarda sua defesa! – finalizou.
Ainda atônito e antes que pudesse iniciar sua primeira frase, o Imperador foi interrompido pela garbosa Águia:
- Homem mortal, o que vês é o Tribunal Celeste do Reino Animal. Exceto tu, todos nós já morremos, e com o agravante de termos sido mortos pela brutalidade humana. Sei que não explica muito, mas já é o bastante para recompor seu estado emocional.
A elucidação da ave fez o monarca compreender que tudo que apreendera sobre espiritualidade desde sua infância era absolutamente verídico. Então, ele sacudiu a poeira de sua túnica, levantou-se e declarou:
- Considero-me inocente, pois nunca maltratei qualquer animal ou sequer derrubei uma só árvore em toda minha vida!
Em seguida, a Abelha indagou se ele tinha mais alguma coisa a dizer; responder negativamente foi o maior erro do réu. Apoiando-se em sua elegante bengala, o Chimpanzé aproximou-se de Cipriano e, tocando-lhe o ombro com uma das mãos e olhando fundo em seus olhos, perguntou:
- O que você vê, homem?
Em um fugaz instante, ele viu nos olhos do Símio as maiores atrocidades que os seres cometeram e cometerão contra o mundo, em todas as eras. Terminada a visão, o Imperador desmaiou, permanecendo estático por alguns segundos; assim que acordou, ele derramou lágrimas amargas e entre soluços, disse:
- Nunca mais feriremos a terra! Enquanto eu e minha prole vivermos, reverenciaremos a Natureza com atos de respeito e gratidão por tudo que a raça humana recebe!
A resposta satisfez os componentes do Júri, e antes que pudessem receber os agradecimentos do absolvido, a potente luz, há pouco presente na sala, tomou o local novamente. Ao acordar de um novo desmaio, César constatou que estava de volta ao bosque romano, porém certo de que tudo que viveu nas ultimas horas não foi um sonho, mas pura realidade.
Naquele exato momento, no Tribunal Celeste, Símio chamou a Águia e disse-lhe:
- Segue-o e faça com que ele derrote os partos.
- Tu fazes agora como já fizestes com Ramsés, com Dario, com Xerxes, com Leônidas, com Alexandre... – pausou – Por que tanta confiança em Cipriano, senhor? Por que dar-lhe as rédeas da Humanidade? – exaltou-se o pássaro.
Com sua peculiar serenidade, Símio impôs sua sábia liderança e ponderou sorrindo:
- Senhora, não é a primeira e tampouco será a última vez que o Todo-Poderoso nos incumbe desta tarefa. Portanto, creio eu que, ao conceder a Cipriano esta transcendental experiência, não privilegiamos um único homem, mas damos à Humanidade a bendita oportunidade de não precisar ver para crer!