TORMENTOS DO IDEAL- um pequeno flerte com a Sci-fi
Caminhava tranqüilamente pela Rio Branco. Era um dia normal de março (uma segunda feira para ser mais preciso); dez horas da manhã. Caminhava sem pressa, sem medo– somente caminhava. Não havia pressa no passo, não havia para onde ir; havia medo, a cidade agora lhe dava todo o tempo do mundo. Caminhava no sentido aterro, uma caminhada bastante calma. A rua era muda. Na verdade, todas as ruas naqueles dias eram assim: mudas, solitárias, desoladas, vazias. A rua é muito mais fria quando não há ninguém por perto, mesmo que seja num dia de março. A única coisa que lhe dava um pouco de calor era o cigarro quase no filtro entre os seu indicador e seu dedo médio. Merda! Era o último cigarro. Foi o único som que se expandiu pelo ar de uma Rio Branco calada. A sombra dos prédios que tomava trechos inteiros; a frieza do ar; a sensação de solidão; o passo vagaroso… era como andar num cortejo fúnebre– rumo ao infinito.
Entrou num bar numa rua transversal. Um pé-sujo qualquer. Ali também não havia ninguém, nem mesmo o dono do bar estava lá. Estava com frio, queria acabar com o frio que sentia. Queria, pelo menos, disfarçar. Procurava lá dentro por uma garrafa de destilado. Pô, pode ser vodca, cachaça, ia ser ótimo achar um uisquinho, um vinho. Outro dia tinha achado uma bela garrafa de vinho do porto, deve ter sido a última dos bons restaurantes do centro da cidade. Agora, só na zona sul esses vinhos, uísques, licores. Procurava uma garrafa que ainda não houvesse sido bebida. A luz queimara há muito tempo, tudo fora deixado como estava. Suas mãos tateavam entre cacos no meio da escuridão, procurando alguma garrafa. Fazia esse trabalho quando o som de vidro se partindo quebrou o silêncio. Talvez fosse um rato, um cachorro ou um gato, os únicos animais que eram tão grande quanto ele. Pelo menos que ele tenha visto no último mês, eram esses os únicos animais que poderiam ter quebrado uma garrafa.
De repente sentiu uma trombada.
Era um corpo grande. Maior que um são bernardo– era um homem. Seu corpo fora tomado pelo susto. Era como olhar um fantasma. Um rosto macilento, pálido, de olheiras profundas. Era como olhar para si mesmo.
– Quem é você?– disse arredio; a solidão faz isso com os homens
– De que adianta perguntar? Fará diferença se lhe responder que me chamo Carlos? Sou um rato como você! Estou rondando pelas casas, restaurantes, bares, por todos os lugares atrás de comida, água, álcool, calor, as noites são frias quando se é solitário, e você sabe disso muito bem.
– Bom, realmente diferença não faz…– ficou pensando um pouco– realmente as noites são frias, e também são os dias. Acho que ser poeta faz a situação ser mais estranha– por que disse isso?
– Também sou poeta. Chega a ser irônico para mim essa situação toda. Imagine só, alguém que sempre buscou a solidão para escrever, que sempre detestou o calor do verão carioca, agora lamenta a solidão, lamenta o frio de março. Bom ,sempre acreditei que estamos aqui para ser a zombaria de deus no cosmos
– Deus não existe. – disse seco– se deus existe não adianta de nada sermos a zombaria do cosmos.
– Como assim?– sentia um misto de curiosidade e irritação
– De que fará diferença para você? Se eu começar a argumentar você se fará de surdo, vai dizer que deus existe por conta do azul do céu, por conta do canto dos pássaros– por tudo que não seja humano. Não preciso dizer porque você não quer pensar a respeito, porque você se sente melhor com um deus que lhe alivia a solidão. De qualquer jeito, quero saber uma coisa. De onde você veio?
– Vim de Jacarepaguá. Estou andando sem destino, creio que você também está.
– Estou andando desde São Cristóvão. Já passei pela quinta da boa vista, mas o som dos animais me angustiava. Passei pela Biblioteca Nacional, tantos livros me traziam uma dúvida horrível– Qual ler? E, quando escolhê-lo, será bom? Eu estou andando pelo centro há um mês ou mais, procuro comida e água todos os dias. É fato, tornei-me um rato.
E depois de um intervalo:
– O que você viu na Zona Sul?
– Nada que não difira do centro da cidade. As luzes da rua acesas pela madrugada, fazendo contraste com as casas de luzes queimadas da orla, os cães– de todos os tamanhos e raças– circulavam pelas ruas, tão carniceiros quanto eu, quanto os ratos ou os gatos. Lá, assim como em jacarepaguá ou na barra, os cães rondam as latas de lixo, famintos. Ocorrem lutas injustas, rottweilers enfrentam yorkshires; pitbulls se engalfinham com boxers. Teve um dia que me deparei com uma cena horrível, para não dizer grotesca: um grupo de pinchers se alimentando das entranhas abertas de um pastor alemão , quando me aproximei a uns dez metros, eles já haviam começado a rosnar. É aterrador, se não fosse…– o outro interrompeu
– Realmente, aquela merda calou o mundo. As pessoas vivem agora naqueles versos de Poe all that we see or seem is but a dream within a dream. – sua voz enquanto recitava esses versos soava como escárnio, não contra o ouvinte mas sim para todos os que não podiam escutá-lo naquele momento. Tolos idealistas! Ha! Aquele engodo é a grande ironia do mundo. Não duvido muito que nós os poetas fomos os que não se sentiram atraídos por aquela porcaria.
– Realmente, quando coloquei uma daquelas máquinas na cabeça me senti incomodado. Pude ver um novo mundo, um mundo melhor…
– É sempre um mundo melhor o que aquilo põe na sua cabeça. Por isso que vicia.
– Tá, eu sei. Acho que é por isso que nós poetas não nos sentimos muito afeitos àquela máquina. A perfeição para nós é um paradoxo: nós a buscamos nos nossos trabalhos, quando pensamos na filosofia somos tomados pelas idéias da perfeição, do ideal; o contato com ela, contudo, nos incomoda, sua existência ao nosso redor nos faz sentirmo-nos inúteis, pois nossa busca maior fora sempre inútil. Devem existir outros poetas espalhados pelo Rio por aí, vivendo como bichos.
– Sinceramente, penso como você nesse quesito. Agora vamos, quero dar uma olhada na zona sul. Não há nada de útil aqui no centro, sem pessoas isso não serve de nada– disse isso enquanto pegava uma garrafa de orloff quente, e uma outra de 51. Venha, quero curtir uma vez como é morar num desses apartamentos da Vieira Souto, vai dizer que você nunca sentiu vontade?– seu humor era estranho, ainda dava uma forte idéia de ser rabugento, porém suas últimas palavras traziam consigo uma certa euforia.
E foram andando pela tarde de uma segunda feira de março numa Avenida Rio Branco deserta e muda.
Agora, já é noite alta quando alcançam Ipanema. Entram num enorme prédio, não há porteiro, ninguém na rua reclama de terem arrombado a porta da entrada. Estão meio bêbados. Não, estão bastante. Sobem o predio entre risos e piadas, sobem pelo elevador até o último andar. Eles arrombam mais uma porta, dessa vez, bem mais grossa, com muito esforço. Um belo apartamento, repleto de obras de arte dos mais diversos artistas, móveis elegantes, um bar bem abastecido. Era nisso que se resumia a sala, na verdade.
Depois deram uma olhada no segundo andar. O segundo andar não tinha nada, somente um escritório; uma biblioteca; além disso, os quartos. Quando entram num dos quartos,, se deparam com o que já imaginavam. Um garoto, magro e de cabelo escorrido, sujo, e fedendo a fezes. Era um fedor tão forte que foi comentado.
– Cacete! Que fedor!– disse Carlos profundamente nauseado– por que é que isso sempre acontece?
– Óbvio, todos acabam desenvolvendo uma profunda dependência psicológica dessa porcaria. O ideal os fascina demais. É como na matriz, tudo que você come ali é como comer no mundo real, ainda mais estas novas versões que usam as excretas e secreções como material para nutrição. As pessoas adoraram tanto essa merda que não se importaram mais se consumiam a própria merda e nem que bebiam o próprio mijo e suor e outros fluidos. Os seres humanos nunca desistem dos seus sonhos.
– Mais um emo nessas máquinas. Eles foram os primeiros a amar esse aparelho.
– Eles eram os que mais precisavam sentir o mundo ideal, onde tudo que eles quisessem ocorresse. São sempre assim– infantis, acreditam que algo no mundo poderia ser bom. São uns atrasados idiotas, vivem um romantismo só mais ridículo que o de Werther devido a viverem em pleno século XXI, quando todos os idealismos toscos já deveriam estar mortos e enterrados. Não passam de uns egocêntricos que não conseguem fazer mais nada senão comentarem dos seus amores, das suas dores, do quanto eles são mal entendidos, mal valorizados– são crianças mimadas.
– Nunca gostei deles. Transformaram a tristeza em produto de mercadológico, quase destruíram a única coisa ainda poética na poesia. O amor, o pop já havia jogado pelos ares com tanta banalização. A alegria é pra poetas de salão e bardos baratos. Só restou à poesia a tristeza. Sinceramente, eu os odeio.
– Sinceramente, sou indiferente a eles. O mercado iria criá-los de qualquer jeito, era a ultima novidade possível.
Passam então pelos outros quartos. Chegam ao quarto do casal. Nele, uma mulher conectada a mesma máquina– uma espécie de capacete sobre a cabeça por onde passavam dois fios de cada lado, um era o receptor e o outro era o transmissor das imagens; além também dos tubos que recebiam e enviavam as secreções, excretas e fezes; havia, claro, a tomada, para que pudesse utilizar permanentemente o aparelho. Era uma mulher loura, de um louro brilhante, a pele viçosa, o rosto estava velado por conta da máscara da máquina, os dois poetas ficaram imaginando de todas as formas possíveis como era o rosto dela. Idealizada, erotizada (seu corpo era firme), mística, angélica, diabólica– de todas as formas. Estava apoiada na parede, de um modo um tanto quanto lânguido, mais para o entorpecido que para qualquer outra coisa, as mãos denotavam a letargia do corpo. Como estaria sua boca naquele momento? Que expressão continham seus olhos? Parecia aquelas imagens de um devorador de ópio, estático, letárgico, com a mente e a alma contidas em outros mundos.
– É uma pena, com umas pernas dessas…– comentara ébrio o poeta de São Cristóvão
– É o mundo que ela tem na máquina que a faz se sentir assim. Deve pensar, de vez em quando, que está numa praia se exercitando, ou numa academia.
– Deve ser uma mulher de rosto bonito.
– Sem dúvida. Para ser a segunda esposa e com essa idade.
– Como você sabe que é a segunda esposa?
– Olhe a pele dessas coxas. São viçosas, tem aquele aspecto que nenhuma plástica no mundo pode dar, não estão esticadas, estão como são, sadias, de um dourado foda. Olhe os braços, só tem aquela gordurinha que as garotas tem em alguns casos, os seios são firmes, e você sabe que não são silicone, são rijos, pela idade do emo lá no outro quarto… pô a gravidade já não teria pena, com esse tamanho. É segunda esposa com certeza, o cara tem grana, tem poder, uma garota dessas é só o que falta. ‘Ntendeu?
Não houve resposta. Não havia muito consenso quanto a isso. Foram para a biblioteca, ficaram explorando os livros, e lá no meio de uma mesa estava o marido. Era um homem alto e forte, cabelos já bem brancos, deveria ter cabelos curtos, mas o tempo que estava sobre essa máquina dera-lhe cabelos grandes. Estava deitado sobre a mesa, como um morto.
– Está morto– disse Carlos. Pela cor da pele, pela rigidez do pulso, não morreu nem mesmo há duas horas atrás.
– Não importa, desde que não fique aquele fedor horrível. Vamos ficar explorando os livros– carlos pensava, seria isso desejo de alienação, ou seria somente um desapego búdico dosado com niilismo?
Ficaram circulando pelas estantes repletas de livros. Os livros eram categorizados por temas– economia, política, história, filosofia (muitos nunca foram lidos, de certo); literatura russa; francesa; italiana (uma edição toda floreada e de páginas branquíssimas da Divina Comédia de Dante Alighieri ); inglesa, americana (uma coleção completa de Poe e Hemingway), alemã.
– Caramba, tantos livros… e nenhum de poesia
– Você sabe muito bem que poesia não vende no brasil– é coisa de viadinho e de adolescente apaixonado.– disse o poeta entre resmungos e risos.
– Essa casa é uma merda, de que adiantou vir pra cá? Vamos pra copa. Quero sentar perto de Drummond
– Bom, serviu pra pegar um Blue Label. Agora que não há necessidades sociais, podemos beber o suficiente para criarmos uma bíblia de poemas. A Grande Obra de Mallarmé só seria possível assim – com o mundo todo morto-vivo.
Agora se encontram em copacabana; bem no início. Estão sentados no banco de Drummond, olhando para o poeta fixamente, como bêbados, seguravam as garrafas numa mão. Na outra, seguravam os cigarros que encontraram numa padaria no caminho e com os Zippos que roubaram do apartamento (mas roubaram de quem?). Pareciam os três e o banco uma só estátua. Drummond sem óculos como sempre, em bronze, ao lado de duas estátuas ébrias de carne.
Os olhos mudaram de direção. Olhavam a praia toda, uma lua de areia tomada, na proporção que se distanciava, pela maresia flutuante. Ficaram olhando, os únicos que ainda pensavam em copacabana talvez. Talvez houvessem outros ratos-poetas pela cidade, ou por São Paulo, Maringá, Osaka, Helsinki que houvessem se encontrado e rodassem sem destino; somente chafurdando patética e fervorosamente por estoques, vitrines bagunçadas. Deveria haver mais gente no mundo que estivesse caçando seus maços de cigarro, suas garrafas de bebida, seus bálsamos, sua comida e sua água.
– Talvez nós poetas sejamos os últimos na terra– disse Carlos
– Duvido muito. Existem outras formas de arte, muitas vezes melhores que a poesia. A filosofia também liberta os homens inteligentes desse tipo de coisa, quem aprecia Schopenhauer jamais concordaria com esse tipo de coisa. Os pintores abstratos também não concordariam com esse aparelho, creio eu. Eu conheço uns bons escritores na Barra, bons poetas. Devem estar rodando os shoppings e supermercados. Um dia nós os encontraremos.
Ficaram assim numa calma muda, como se sentissem um nirvana interior. Olhavam a cidade muda, Shantih, Shantih, Shantih …
E nesse momento, todas as luzes na rua haviam se apagado na noite sem lua. O céu, terra e mar eram uma só escuridão onde se deixavam escutar a rinha e o latir dos cães– procurando comida e água. No final, só haveria a escuridão sobre a terra.
De repente, não havia mais campos bucólicos e idílicos; não mais festins de luxúria e gula; não mais aventuras espaciais, nem outras aventuras fantásticas. Só havia uma grande máscara que impedia a visão e prensava a face. Todos eles tiraram, e deram os primeiros passos em meses, tirando os tubos de todos os orifícios. Os passos eram de início inseguros, tremulantes como panos ao vento. Acostumavam-se ao gosto abominável das fezes e das secreções. Os olhos não estavam acostumados a escuridão completa. Alguns se tão inseguros, começaram a se arrastar, com medo de caírem em precipícios que suas casas, agora reinos desconhecidos, poderiam comportar.
Eles caminharam para suas varandas e janelas, depois que seus olhos acostumaram-se às trevas. De lá, contemplavam o mundo real– lembravam-se de suas famílias, de seus empregos, de seus amores, de suas angústias e medos. Olharam o mundo calados…
E um grande ululo tomou conta da noite do mundo.