A VIÚVA INCONFORMADA - V I PARTE
A VIÚVA INCONFORMADA - VI PARTE
Passado que foi o fim-de-semana, as vidas de cada um regressariam à normalidade, à aparente normalidade e rotinas, contudo, nada mais seria como dantes. Se em A. Jorge a cabeça lhe fervilha de contentamento e fantasia, em Felizbela esfriaria para a sujeitar à reflexão. O assumido noivo, cada vez se sente mais apaixonado e a razão deixou de se exercer, dando lugar ao sonho, ao devaneio. Fora das suas ocupações empresariais mais ainda se revelam e dentre estes, a remodelação da casa, a viagem de lua-de-mel, os presentes e surpresas que projecta para a sua futura esposa, ocorrem-lhe em tropel e atropelam-se em intenções e vontades.
O aproximar da noite transmite-lhe mais magia que as ocupadas horas do dia e numa das últimas, uma poderosa insónia, qual vaga alterada e inesperada, abater-se-ia sobre si e inundar-lhe-ia a cabeça em pensamentos de fantasia e sonho. Despertado de um sono que teimava em não aparecer, congeminava um lar “revoltado” com acentuadas melhorias. Desde a remodelação do seu quarto aos móveis e aos projectados quartos para crianças, para as crianças que nunca teve e deseja e que a si mesmo dizia querer ter dois filhos, até às pinturas das paredes ou afixação de novos quadros em substituição dos que até aí estavam, nada pretendia que lhe lembrassem a anterior relação. Até mesmo o espaço exterior e ajardinado iria receber melhorias e alterações. Nada, nada lhe poderia lembrar a relação fracassada sob pena desse “fantasma” se apontar como um cutelo sobre a sua cabeça. É de crer que também estivesse a pensar em Felizbela, quando estes pensamentos ocorreram e do quanto constrangedor representaria para ela, dormir na mesma cama, olhar os mesmos quadros ou sentir o cheiro das mesmas flores.
À parte a estrutura básica da casa, o resto deveria passar por remodelação profunda. Curiosamente até os animais de estimação, cão e gato iriam adoptar outros nomes. Todas as apostas que projecta apontam para o esquecimento total do seu passado. A. Jorge sente estar a viver uma paixão que só encontra paralelo na que se vive pela primeira vez durante a adolescência e dela dará parte a Felizbela. Já madrugada dentro e não antes das 04.00 horas, terá adormecido por esgotamento de tantas ideias emergentes. Do que se sabe, o sono não seria o corte com a fantasia e se antes fazia projectos de olhos abertos, o que o desejo e vontade concreta lhe sugeriam, quando acordou do sono, recordaria o sonho tido e que escreveria para memória futura e romântica.
Mão dada, caminhávamos numa estrada sem fim. Chovia. Uma chuva miudinha e quente vaporizava-nos. As andorinhas à nossa frente cometiam acrobacias com os seus biquinhos abertos para captar insectos desprevenidos. Pensei inicialmente que o faziam para nos saudar, para nos cumprimentar pela nossa felicidade. Percebi que não. A meio da estrada desviamo-nos à esquerda e descemos a ladeira que, ao fundo encaixava apertada entre penhascos e sombras o vale do que foi rio e agora é um ribeiro adormecido na cama do seu antepassado. Pé ante pé atravessámo-la sobre o açude até ao velho moinho, cuja roda da azenha já carcomida pela paragem forçada e em luto pelo defunto rio, apodreceria ao tempo. Nas águas paradas e transparentes remiraste-te atenciosamente e nesse momento bati uma foto que guardaríamos para a posteridade. Tivemos a curiosidade de entrar no moinho, cuja porta velha de madeira se fechava por enferrujados ferrolhos e apreciamos atenciosamente o seu interior. Todo o mecanismo arcaico, de pedras circulares e graníticas que num movimento circular, noite e dia, incansavelmente, ajudariam a matar a fome a dezenas de gerações, é dos mais belos inventos que a engenharia greco-romana faria durar dois milénios, só agora morrendo às mãos do homem “civilizado” por efeito da construção de barragens. A um canto, o catre a sugerir horas de descanso e de amor romântico dos moleiros, faria nascer em nós um desejo intenso de nos possuirmos e que uma série de beijos sôfregos calaria e amansaria a libido. Visto o interior do moinho, saímos abraços e disseste: que pena o moinho não ter condições para ser a tua moleirinha querida. Quem sabe, não estará à venda e possamos materializar esse sonho.
Prosseguiríamos nosso passeio pela margem esquerda e adiante encontraríamos os restos de uma pequena praia fluvial, abrigada em parte sob a sombra de acácias. Descansaríamos sentados no tronco velho de uma árvore em tempos derrubada pela força do caudal invernoso do defunto rio. Sobre as nossas cabeças o cântico das aves presentear-nos-iam com as suas melodias. Dentre as várias especímenes ressaltava o tentilhão que maviosamente soltava as narinas, deliciando-nos com seu cântico saído da ramagem exuberante. A chuva miudinha iria acoitar-se noutras paragens, abrindo-se uma auto-estrada de luz e sol permitindo que descalços entrássemos na água tépida e aquecida pela incidência solar. Arregacei as calças até à altura dos joelhos e tu ligeiramente o vestido e caminhamos mão dada, adentrando as tranquilas águas. Insatisfeitos regressaríamos a terra e não perscrutando à nossa volta vivalma, o convite surgiria para um mergulho natural nas águas serenas. Docemente penetramos nas águas e chapinhámo-nos. Já aspergidos, um mergulho combinado sob as águas levar-nos-ia até à outra margem. Á chegada trocaríamos suave beijo. A poente, o sol espreitaria envergonhado por trás de uma nuvem e de olhos bem abertos mirava a ninfa que se projectava em sombra sobre um relvado, qual alcatifa a sugerir um encontro carnal. Seria pois neste cenário bucólico que nossos corpos se exauriram de amor e mostraram ao sol, o quanto ele perde por só copular e abraçar a lua nos eclipses. Saciados os corações, novo mergulho de regresso até à outra margem, purificariam os corpos. Na projecção do astro rei e sobre penedos erosados, deitámo-nos, fazendo dos raios a nossa toalha. Vestidos, regressaríamos para a realidade.
Fora este o sonho que A. Jorge registaria para memória futura e que iria guardar para em ocasião adequada, mostrar a Felizbela.
Constança prossegue a sua vida profissional com o mesmo empenhamento de sempre. A separação haveria de ter só efeitos ao nível da afectividade e se A. Jorge para ela é passado que a memória evita revisitar, o mesmo não acontece com Rodrigo. Este não tem ido ao MSN e Constança questiona-se sobre quais as razões. Ocorrem-lhe alguns pensamentos funestos embora os repele de imediato, sujeitando-os a impedimentos naturais da vida de cada um. Não quer crer que se tenha afastado dela porque acredita na sinceridade que as suas palavras deixavam transparecer, contudo, e face à sua desmesurada ausência, Constança esboçaria para se compensar, à elaboração de pequenos poemas e que a si mesma promete dar parte ao amigo. Nunca antes o havia feito e só agora e em resultado da solidão que a separação originou e mais ainda por força da amizade desenvolvida e quiçá apreço afectivo, se lhe revelam. Alguns exemplares que foi escrevendo e guarda num pequeno caderno e que à noite e já deitada gosta de ler na penumbra de uma mortiça lâmpada, iriam ser a sua primeira aventura poética, cuja fantasia alimentá-los-ia.
I
Pudesse eu, Rodrigo,
Ao teu lado caminhar,
Sairia sempre contigo,
Para te abraçar e beijar.
II
Quer queiras, quer não,
Ser-te-ia sempre muito fiel,
Dar-te-ia o meu coração,
Mesmo que de ti recebesse fel.
III
Surgiste na melhor hora,
Na hora da minha solidão,
Se o tivesses feito outrora,
Conquistarias meu coração.
IV
Não sei porque estou assim,
A sentir-me tão apaixonada,
Não poderás dar-te a mim,
Tudo o que sinto, valerá nada.
V
Terei de viver meu engano,
Como se fosse verdadeiro,
Não poderei dizer-te: eu te amo,
Como o fiz, ao amor primeiro.
VI
Eu sou livre, tu não
Que pena, direi eu,
Dar-te-ia meu coração,
E diria: sou tua e tu meu.
VII
Vives no meu pensamento,
Dás sinal do meu desejo,
De ti guardo o lamento,
De não sentir teu doce beijo.
Dado que Rodrigo tarda em voltar ao MSN, Constança resolveria enviar-lhe por email as quadras que vai elaborando por saudade do amigo virtual. Acredita que ao lê-las não resistirá à tentação de ir ao MSN para lhe agradecer a gentileza. Rodrigo abriria a caixa de correio electrónico e leria o email da amiga Constança. Como não tem ocasião para ir ao MSN agradecer, resolveria responder-lhe à letra.
Registo como boa amizade,
As quadras que me dedicaste,
De ti também sinto saudade,
Desde a última vez que falaste.
Sei que iremos voltar a falar,
Mas ainda não o pude fazer,
Também te quero encontrar,
E mais ainda, te quero ver.
Pela resposta enviada em verso, Constança perceberia que não tinha perdido o amigo e que só por impedimento pontual não se têm encontrado. Embora não substitua o encanto do MSN, a resposta de Rodrigo, dada desta forma, alegrou-a a sugeriu-lhe contra-resposta poética. Constança encontraria na poesia parte da solução para a solidão. Conquanto reconheça talento duvidoso, promete a si mesma ilustrar a ausência do amigo, numa relação com a escrita. Feliz, prosseguiria a sua “veia” poética com a crença de num futuro compilar as poesias e as entregar em mão, ao amigo.
I
O que por ti sinto, vai além de mim,
Nem sei como o explicar,
Tens o odor da mais bela flor de jardim
Que colhi para te lembrar.
II
Fosses tu flor do meu canteiro,
Quiçá uma rosa ou amor-perfeito,
Dar-te-ia cuidado o ano inteiro,
Ainda que não tivesse esse direito.
III
A palavra solidão,
Não rima com amor,
Porque castiga o coração,
Dando-lhe sofrimento e dor.
IV
Se tu pudesses ser meu,
E eu pudesse ser tua,
Tu serias o meu sol
E eu, a tua lua.
V
Quem me dera ser tua divindade,
E levar-te comigo para o céu,
Dar-te-ia a minha amizade
E envolver-te-ia no meu véu.
VI
Sonhar eternamente assim,
É tudo quanto eu queria,
Dar-te-ia o melhor de mim
E se mais tivesse, mais daria.
VII
Mal sei o que é o amor,
Porque grande foi o sofrimento,
Agora que te conheci, foi-se a dor
E também o meu lamento.
VIII
Se pudesse para sempre te amar,
Poria isso em testamento,
Diria ao notário sem exitar,
Chegou o dia do meu contentamento.
Constança sente que algo de muito importante a trespassa fulminante, qual laser. Rodrigo está a mexer com ela como nunca o sentiu de ninguém e a expressão simples da “poetisa” reflecte isso mesmo. Esta descoberta cândida para as letras trá-la obcecada e cada momento está a ser aproveitado para verter os seus sentimentos, desejos e aspirações, ainda se saiba serem meramente líricos. Esta busca deliberada talvez aconteça como expressão recalcada de um amor que não foi vivido como desejaria e o que resta de positivo no “naufrágio” é entusiasticamente versejado. Alimenta-se a si mesma pela ausência de amor e de amigo.