A Cidade Encantada

“Ouro como nunca se viu antes”, esta havia sido a promessa do guia. Bastava atravessar a floresta e, do outro lado da montanha, estaria o verdadeiro Eldorado.

Mas agora eles estavam perdidos, há dez dias não conseguiam reencontrar a trilha e um dos expedicionários já havia morrido: picada de cobra.

— O que você faz no meio do nada, Thornton? — o viajante francês questionou — Um homem rico, educado em Cambridge, precisa mesmo de todo este ouro? Seu país já não pilhou demais estes paisecos no cu do mundo?

Thornton soergueu a cabeça, que antes pendia sobre o rifle, e refletiu.

— Acho que não é por causa do ouro, Louis. Viajo apenas para escapar das sombras de meu pai — o que era verdade, ser filho do grande Sir James S. Thorton, desbravador das selvas do Congo, caçador de tigres siberianos e o maior colecionador de relíquias mesopotâmias não era nada fácil.

— Entendo, — Louis tragou seu cigarro — você quer fama. Para mim, basta apenas o dinheiro mesmo.

A expedição inicial contava com vinte homens, três deles europeus, Jonathan Thornton, Louis “alguma-coisa-ville” e a vítima da cobra, o russo Maxim Vasiliev, o restante eram carregadores, guias e cozinheiros.

Thornton balbuciou algumas palavras na língua bárbara dos guias, eles retrucaram, Thornton replicou e o clima esquentou. Os guias os ameaçaram com facões, Thornton com o rifle, enquanto Louis os observava calado.

— Qual é o motivo da briga?

— Perguntei quando partiríamos, mas eles dizem que não seguirão adiante, que os espíritos ancestrais estão contra nossa viagem e que todos morreremos antes de chegarmos ao ouro.

— Besteiras! — Louis riu.

— Foi o que eu disse a eles, e isto os irritou. Tolos, cegados pela superstição!

— Você não teme que nos matem? — Louis sussurrou.

— Tudo é possível. Nesta terra sem lei, se nós desaparecermos no meio do mato, jamais nos encontrarão, nem sequer saberão que um dia passamos por aqui.

— Vamos nos revezar na vigília, então... — Louis propôs.

A noite caiu e Thornton vigiou no primeiro turno. Os guias e carregadores adormeceram e Thornton passou parte da noite atormentado pelos ruídos dos bichos, pelos mosquitos que o atacavam por todo o corpo e pelo medo de morrer na floresta.

À meia noite, cutucou Louis com o cano do fuzil:

— Sua vez, frenchy. Vou tentar dormir um pouco nesta merda de floresta — e, apesar de preocupação, Thornton logo adormeceu.

Sua pele ardia sob o sol do meio dia, toda inchada e vermelha.

— Porra, quanto tempo dormi? — Thornton se levantou e esbarrou em Louis, quase deitado sobre ele, roncando como uma porca velha.

— Louis, seu merda, você dormiu durante a vigília! Cadê os guias, cadê os nossos suprimentos?

Pelos indícios, o acampamento havia sido desmontado logo cedo, os malditos selvagens haviam deixado Thornton e Louis para perecerem na floresta. O inglês catou suas tralhas e tentou encontrar rastros, porém esta nunca foi uma de suas especialidades, jamais saberia distinguir uma pegada humana da pata dum animal no meio da selva, tudo poderia ser tudo.

— Se não encontrarmos água, morreremos em alguns dias — três talvez —, mas se tivermos a sorte de atingirmos o leito dum rio, podemos agüentar uma semana.

— Não seja tão pessimista, rapaz. Eles não devem estar longe.

— Só umas cinco milhas, numa direção que não sabemos... — Thorton fez o cálculo — Mas não vamos ficar aqui esperando a morte chegar — ele jogou a mochila nas costas, o rifle nos ombros, o chapelão e se pôs a caminhar.

Louis o seguiu em silêncio.

***

Após algumas horas se embrenhando na mata, Thornton e Louis chegaram a um regato.

— Encha os cantis, Louis. Vamos seguir naquela direção.

— Mas para lá nós estaremos nos afastando da civilização...

— Só que estaremos indo em direção à Cidade Encantada.

— De que adianta chegarmos lá se não teremos como trazer de volta os tesouros? Não faz sentido, Thornton... Vamos voltar, organizar uma nova expedição e, depois, tentamos de novo.

— Não, Louis, não vamos desistir após termos chegado tão longe. Se quiser voltar... Faça como bem entender. Eu sigo adiante.

Talvez movido por curiosidade — ou por medo de se embrenhar sozinho na floresta —, Louis preferiu continuar.

O regato desembocava num rio e, na margem oposta, Thornton avistou algo estranho. Apanhou o binóculo.

— É um barco, Louis. Podemos descer o rio com um barco.

Ele se despiu e empilhou suas coisas.

— Nadarei até o outro lado e trarei o barco até esta margem.

A correnteza era fraca e Thornton, que havia sido recordista de natação na faculdade, atingiu rapidamente o outro lado. Aproximou-se do barco e então se deparou com os antigos donos dele: três esqueletos, vestidos com roupas ocidentais, deitados no fundo do bote. A cena o repeliu.

— Vamos, Thornton, estou esperando! — Louis berrou da margem oposta.

Dominando a ojeriza humana à morte, Thornton recolheu os ossos, que se desmantelavam ao toque, e os jogou para fora da embarcação.

— Que Deus me perdoe, ele resmungava. Após ter liberado o barco, ele remou para o outro lado e recebeu o outro passageiro. Lentamente, desceram o leito do rio.

Ao cair da noite, eles desembarcaram e montaram pouso. Comeram parte do resto da ração que traziam e dormiram, exaustos.

Prosseguiram a viagem de manhã. Estavam perto da montanha e a velocidade da correnteza aumentava consideravelmente. O rio prosseguia numa cascata e Thornton e Louis tiveram de lutar para que o bote não virasse. Mais à frente, o rio desaparecia por uma fenda montanha adentro.

— O que fazemos? — Louis perguntou assustado.

— Vamos continuar... — Thornton tentava demonstrar coragem.

O barco adentrou a fissura e as águas se tornaram vagarosas. Com os remos, os aventureiros controlavam a distância do barco das paredes rochosas, ou desviavam-se das estalactites. Em alguns trechos, eles tinham se deitar no barco, de tão baixa que era a fissura.

— Acho que estamos chegando do outro lado, Thornton comentou, estou vendo uma claridade.

— É mesmo! — Louis se empolgou, quase sufocado pela claustrofobia.

No entanto, a claridade não era o outro lado da montanha. Quando o barco deixou a fenda, Thornton e Louis se levantaram, estupefatos.

— Meu Deus, isto é maravilhoso! — Thornton exclamou, ao ver a cidade construída no interior da montanha, toda feita de ouro: casas, templos, palácios e ruas. A claridade vinha dum gigantesco orifício no topo; suficiente para talvez umas quatro ou cinco horas de luz ao dia, Thornton especulou e, como estavam sob sol do meio dia, o fulgor do ouro quase os cegava.

— Precisaríamos de toda a população de Marselha para levar este ouro embora! — Louis saltou do barco e se lançou contra o solo dourado — É ouro mesmo, Thornton!

Eles passearam pela cidade por horas e tudo nela era realmente de ouro, desde os edifícios até as mobílias das casas e os utensílios domésticos. Louis passava apanhando tudo que conseguisse carregar.

— O que você está esperando, Thornton? Não vai levar nada?

Mas o inglês tinha os olhos fixos na maior das construções, possivelmente o palácio que havia sido do governante daquela cidade.

— É lá que estão os maiores tesouros, ele disse.

Adentraram os vastos salões do palácio, as câmaras, a biblioteca e, após terem vasculhado quase todos os cômodos, encontraram a sala do tesouro, onde não só havia ouro, como todo tipo de pedras preciosas.

Thornton retirou uma sacola de lona da mochila e a encheu com diamantes, moedas de ouro e outras riquezas inestimáveis.

— Com este dinheiro, poderemos viver o resto de nossos dias como reis, Thornton comentou e, quando se virou para ver o que Louis fazia, deparou-se com o rifle do francês apontado para ele.

— O que foi, Louis? Que brincadeira idiota é esta?

— Brincadeira alguma, Thornton. Eu simplesmente não posso deixá-lo voltar pra casa.

— Do que você está falando? Viemos juntos, voltaremos juntos... Como você espera sobreviver nesta floresta sem minha ajuda?

— Não preciso de sua ajuda. Sei muito bem onde os guias e os carregadores estão, fui eu quem os pagou para nos deixar a sós no acampamento.

— Por quê? A sua ambição é tão grande que você quer tudo para si? Pode levar o que quiser, esta cidade tem muito ouro, leve tudo! Não me importo.

— Nada disto, Thornton... Não é por causa do dinheiro. Alguém me contratou para matá-lo, caso você encontrasse a Cidade Encantada. Fiz de tudo para evitar que isto ocorresse, mas você não desistia, não tirava da cabeça esta idéia fixa. Se você vai morrer, é porque não sabe quando parar. Eu lhe dei todas as chances.

— Contratou? Quem me quer morto?

— Esta é uma questão que você terá de levar para o inferno, mon ami.

O dedo de Louis tocou o gatilho do rifle, mas Thornton reagiu arremessando um punhal birmanês que trazia consigo, presente de seu pai recebido quando, ainda criança, ele havia se tornado escoteiro.

A faca se cravou na altura da clavícula de Louis, que deixou o rifle pender ao seu lado. Este foi o tempo para que Thornton também apanhasse sua arma, mas, ao procurar pelo inimigo, Louis já havia desaparecido.

Fora do palácio, a cidade estava enegrecida. O sol não mais reluzia no orifício superior e, por isto, tudo estava tomado por sombras. Thornton jamais encontraria Louis nas trevas. Ele acendeu uma tocha e se dirigiu até onde o barco havia sido atracado.

Não estava mais lá.

A lua cheia começou a surgir pela abertura na montanha e a cidade ficou banhada por uma luz prateada. Foi então que Thornton avistou o barco boiando contra a fraca correnteza. Louis remava em direção à saída da montanha.

Thornton efetuou um disparo. Não queria alvejar Louis, apenas assustá-lo, porém o tiro foi certeiro. Louis soltou um urro de dor.

O inglês correu até o bote e nele embarcou. Louis estertorava, tossindo sangue, trêmulo, em choque. Thornton analisou a ferida. O projétil havia perfurado uma espádua, atravessado um dos pulmões de Louis e saído pelo outro lado. O francês não sobreviveria, estavam a dias de viagem da cidade mais próxima; a hemorragia tiraria a vida dele bem antes disto.

— Agüente firme! — Thornton o confortava.

Louis fez um sinal para Thornton, apontando para sua mochila.

— O quê? Você quer que eu pegue algo ali? — e com o menear positivo de Louis, Thornton passou a remexer a mochila, retirando os pertences um a um.

— É isto? É isto? — ao retirar uma carta, Louis arregalou os olhos.

— Leia... — ele murmurou.

Thornton guardou a carta no bolso e começou a remar, para deixarem a Cidade Encantada e, mesmo que as chances fossem zero, tentar salvar a vida de Louis.

Mas quando chegaram à cascata, tiveram de aportar. Não haveria como continuar com o bote. Thornton improvisou uma fogueira, ao lado da qual Louis agonizava, delirando e encharcando as roupas de suor.

Thornton retirou a carta do bolso e, com o lume da fogueira, a leu.

<<Caro Monsieur Guillaume Beaumont,

Estou certo de que meu pedido soará estranho, porém, em sua atividade, imagino que o senhor já deve ter aceitado trabalhos muito mais inusitados do que o que lhe proporei.

Sou um homem com grande reputação, conquistada após anos de viagens e, em muitas ocasiões, com risco de morte. Contudo, meu filho decidiu, recentemente, que assumirá o meu lugar, ou, o que mais me constrange, que será maior do que eu fui.

Um bom pai é aquele que cria um filho para o mundo, mas eu seria o homem mais infeliz se minha fama se encolhesse para que meu filho pudesse brilhar, tudo isto porque ele está convencido de que encontrará a mitológica “Cidade Encantada”.

Eu mesmo já parti em três viagens para aquela região, desbravando florestas perigosas e nada encontrei. Seria uma grande decepção para mim se ele obtivesse logro onde eu fracassei.

Providenciarei recursos suficientes para que você forje uma expedição, mas de maneira alguma meu filho poderá encontrar tal cidade. Se isto ocorrer, faça de tudo para que ele não volte.

É com imensa dor no peito que lhe faço tal pedido.

James S. Thornton.>>

***

— Seu pai contratou um assassino para matá-lo? — Melvin liberou dois tostões de açúcar no chá gelado, enquanto tentava espantar de si, com um leque, o mormaço do Cairo.

— Acredita nisto? Eu mesmo fiquei em dúvida. Mas a caligrafia de meu pai é inconfundível. Na verdade, toda esta história é bem típica dele. O ego de papai não tem limites.

— E o que aconteceu com o francês?

— Morreu naquela mesma noite, ao lado da fogueira.

— E seu pai, sabe que você sobreviveu?

— Que nada! Apaguei todos os rastros da minha existência e com as preciosidades da Cidade Encantada reconstruí minha vida, Thornton estendeu o passaporte falso ao amigo. — Agora me chamo Louis de Tocqueville.

Os amigos riram.

— Mas você não sabe da melhor, Thornton-Louis prosseguiu. Ao retornar da selva, eu desenhei um mapa com as indicações para se encontrar a Cidade Encantada e o enviei para papai.

— Sério? É alguma espécie de cristianismo radical: “oferecer a outra face”?

— Não, meu amigo, eu agi do mesmo modo que ele e, com parte do meu dinheiro, eu contratei os mesmos guias para levá-lo e abandoná-lo na floresta. O mapa está errado, o caminho não existe.

— Meu Deus!

— Há seis meses que não tenho notícias de papai. Pelo menos a fama dele continua intocável. Eu nunca quis ocupar o lugar dele. Mas talvez este seja o desejo de Louis de Tocqueville...