Narcose à Meia-noite
ou tormentos do jovem Jacques
"É Balzac, que, apesar de fazer parte de um
clube de bebedores de haxixe, nunca bebeu
a droga, porque (dizia ele) o homem que
voluntariamente se despoja do mais belo
atributo humano – a vontade – deve ser,
na escala animal, colocado abaixo do
caramujo e da lesma..."
Vossa Insolência – Crônicas
Olavo Bilac – 02/04/1894
Pode ser que Baudelaire estivesse errado, talvez não, talvez eu tenha entendido mal suas palavras, lido o livro de qualquer jeito, só por ler, ler sem ter cabeça, não sei, pode ser que sim, como pode ser que não, pode ser que Baudelaire tenha apenas de forma poética se enganado..., mas o fato é que lá estava eu, fatigado, amedrontado, quieto, um menino em noite tempestuosa.
O boticário me receitou o uso do haxixe, na realidade o uso de um derivado do haxixe.
Fui à botica pela manhã, contei como passava minhas noites, as quais não dormia, não pregava os olhos, não cochilava, não dormitava, desejando o sopor, café e cigarros, Meu estomago me dói, minha mente esta deturpada, tudo parece estar errado, tenho medo de tudo, saio pelas ruas em noite profunda, caminhando por uma cidade já fenecida, onde as sombras procuram a luz para que assim também possam morrer, morrer em paz, Sei, vou dar-lhe tanato de canabina, De que se trata, É uma sorte de alcalóide, um derivado do haxixe, mas deve lembrar-se de não tomar mais de uma por dia, os efeitos são inenarráveis, Claro, claro, peguei o invólucro de suas mãos velhas e brancas, como quem pela primeira vez segurou seu filho, coloquei-a no bolso do paletó, pus o chapéu, cumprimentei-o, parti.
As ruas pelas quais voltei, não eram as ruas pelas quais fui à botica, na realidade eram as mesmas, mas de animo tomado, as via de forma mais florida, primaveril, de forma que, as donzelas, que a muito não me excitavam, agora tomavam novo lugar em minha mente.
Parei numa taverna onde pedi uma garrafa de absinto, parei na tabacaria, comprei alguns charutos e cigarrilhas, fui às docas, comprei cannabis, de lá, para casa, entrei em minha biblioteca, área restrita, deitei-me no sofá e esperei a amaldiçoada noite que vinha infernizar-me dias atrás, porém, desta vez eu estava preparado.
Quando a noite surpreendeu a cidade atingindo os primeiros cumes das montanhas que a cercavam, estava eu entorpecido pelo absinto e pelo láudano, um estado de coma temporário, método do qual me utilizava sempre para tentar alcançar o sono profundo, inutilmente, dei-me conta do horário, levantei-me, cabeça doendo, pés inchados, braços pesados, arrastando-me corri a escrivaninha, abri a primeira gaveta e peguei a boceta onde o botica havia colocado o milagroso remédio, ascendi um charuto, enchi uma taça com vinho, sentei-me na poltrona, e numa tragada farta tomei todas as pílulas que lá havia.
O relógio atingiu meia-noite, a noite adentrou escandalosa pelas janelas do aposento de leitura, as cortinas arfavam como velas dum navio em noite tempestuosa, os livros vinham ao chão num intelectual desmoronamento, as folhas eram estufadas pelas lapadas, os candeeiros de azeite um a um foram se apagando, o coma me adentrou pelas solas do pé.
Da poltrona, dava-me de cara com um espelho, aço fortemente polido, imagem embaçada e inverossímil, foi dali que vi a cena toda acontecer, senti uma forte dor no peito, um dor atroz, Cristo certamente sorriria, Pai este é o flagelo que me encomendastes, minha razão não me habitava naquele momento, senti meu pescoço inchar, um balão de carne, nervo e ossos, minha boca forçadamente se abriu, e vi sair dela duas mãos que a abriam com violenta força, aberta totalmente, uma cabeça fez-se presente, como um parto, sem fórceps, surgiu um ser saído de dentro de minha garganta, sem placenta, a dor presente e latente, caiu no carpetado, espreguiçou longamente, arrastou-se até o mancebo e apanhou meu sobretudo.
A morfina, o láudano, o absinto, o haxixe, o fumo sabe-se lá em que o meu organismo nessa altura se deleitava, pode ser que tão somente as pílulas receitadas fizeram aquilo, ou não, mas lá estava ele, o homem que vomitei, o homem que surgiu pela minha garganta, o homem que rompeu a caverna escura e mucosa.
Levantou-se e caminhou até a garrafa de vinho, abriu, de gole único e demorado secou-a, estalou a língua no céu da boca, sorriu, abriu a caixa de charutos sobre a mesa, e em movimentos circulatórios com bastão de cedro ascendeu-o, sentou-se, olhando-o bem, poderia se dizer que tratava-se de um homem de alta estirpe, de um homem lido, de um homem viajado, tirando é claro a nudez coberta por um sobretudo de couro e um chapéu paleta que, confesso, deu-lhe um ar exuberante, apaixonante, levantei-me e corri o aposento ascendendo os candeeiros, um a um, com movimentos rápidos, encostei-me à porta, e assustado perguntei, Quem és tu, uma gargalhada rota espalhou-se junto as lapadas de vento pela alcova, Quem és tu, forcei, bati o pé, perguntei, Quem és tu, anjo ou demônio, será que lia eu Fausto e agora Mefistófeles jaz diante de mim, dizes a que veio, vamos, ele se virou, ergueu a luminária a altura do rosto, e, perguntou-me, Não me reconheces, o susto tomou-me de assalto, estava eu na presença de mim mesmo, um outro eu, sentado, fumando e vestindo meus trajes, um eu exuberantemente eu, Não podes ser, Como não podes, ponha para ouvirmos o saudoso Vivaldi, adoro as flautas cortando os tímpanos de minha alma, Não, não porei nada até que me dizes a que veio, Não direi nada até que coloque o homem a tocar, Certo, girei a manivela, e liguei o gramofone, Venha senta-se comigo, O que queres de mim, Apenas uma conversa informal, dito isso caminhei até a ponta da mesa, e sentei-me na poltrona, não posso dizer que isso tudo acontecia, ou se era coisas de minha mente entorpecida, não posso julgar, não sei qual o ocorrido.
O fato é, continuou o meu eu a dizer, é que o senhor anda a destruir-me com seus vícios insólitos, e leituras baratas, onde está Sartre, Balzac, onde está a poesia, sua vida é um monte de nada, és mais baixo que o caramujo e a lesma..., és um musgo de arrastar de lesma, O que queres de mim, Meu corpo, Seu corpo, como seu, esse corpo é meu, Será que realmente acreditas que é de veras seu, será que não és tu o homem que saiu de minha boca como um aborto maduro, vamos homem não chores, Não estou chorando, Mas logo vai, Como, Verás, o importante é que não quero mais o senhor gerenciando meu ser, não o quero na frente dos negócios, se me permites o sarcasmo, o fato é que se não for por meios de bebidas, de drogas, de noite a fio o senhor não passa de um homenzinho qualquer, nunca serás um grande escritor, olhe para você, cabeça deformada, magro, amarelado, andas curvado, procuras inspiração onde sabes que nunca ceifarias realidade, Ganesa por piedade lhe da lampejos de criatividade, e tu te achas no direito de achar que és de verás um escritor, não me faças rir, Não grite comigo, não grite, Vês estais a chorar, seu pulha, homenzinho de merda, Não fale assim comigo, Quero meu corpo seu resto, quero tomar a frente das coisas, não mereces a vida que levas, no julgamento diante ao deus Thot, entenderás e irá saber que deveria ter feito tudo diferente, Vá embora, volte para seu inferno Mefistófeles, Oh agora quer citar Goethe, não, nunca, fora, vá, suma, seu, seu, seu..., irrita-me, vês, como me deixas, estou transtornado, não quero vê-lo, vou entrar de novo, e quando me olhar no espelho não quero ver estas olheiras e essa cara de coitado, ele caminhou até a mim, ficou nu, subiu na escrivaninha, abriu minha boca com muita força, e colocou um de seus pés como se vestisse uma calça, depois o outro, e sacolejou na cintura para que pudesse se acomodar, quando não – já havia entrado de volta.
O dia amanheceu, a mulher da limpeza me encontrou, batia em meu rosto, nada..., passado algumas horas entrou o médico, examinou-me, correu pelo quarto, eu só podia ver o espelho, e lá estava eu sentado nu na poltrona, o médico encontrou a boceta onde guardará e receberá do botica as pílulas mortíferas causadoras de meus delírios, pegou no fone e discou para o número na caixa, de um salto de tempo ao seu lado estava o botica, com cara de espanto, Foste tu que destes a ele essas pílulas, Sim, mas não entendo, Ele esta em lipotímia, coma induzido, um coma irreversível, espero que o senhor esteja satisfeito, Não, não o senhor doutor não compreende, eu vendi a Jacques placebo, nada mais que placebo, placebo, eu vendi a ele placebo, o médico começou a gargalhar, a moça da limpeza começou a gargalhar, o boticário começou a gargalhar, de minhas profundezas ele começou a gargalhar, o Mefistófeles, e o som da Primavera tomou conta de todo o ambiente que se escureceu para sempre, para sempre, para sempre...
Flávio Mello
27/08/2005
11h 20min
NOTA:
... este conto para ser melhor entendido é recomendado a leitura de Paraísos Artificiais de Baudelaire e o livro de crônicas de Olavo Bilac Vossa Insolência, onde se encontra um texto chamado Haxixe, no capitulo Pessoal.
A personagem Jacques foi tomada emprestada das crônicas de Bilac, Jacques é o alter ego do príncipe dos poetas.
F.M.