Enquanto reza o terço
Enquanto reza o terço caminha sob uma singela brisa, mas o suficiente para deixar seus cabelos úmidos, seus passos se espalham pela galeria, o som dos saltos do sapato de verniz, ora metódicos, ora descompassados, sente que está sendo seguido, olha para trás, nada, vira a direita no fim da galeria, desce uma pequena ladeira em direção ao ponto de trólebus, enquanto reza o terço.
Não sabe ao certo que horas são, talvez dez, talvez onze, pouco importa saber que horas iremos morrer, não é.
Ele desce, como já disse, em direção ao ponto onde tomará o coletivo, as poças d’água são como espelhos estilhaçados que aos pedaços se espalham por um chão grafite, as luzes artificiais são como anjos que cercam as pessoas trazendo conforto e segurança, menos para ele que sente o lobo que o segue, sente o cheiro de seu pêlo úmido, de seu hálito carnívoro, dá sinal de ok ao motorista que pára rente ao meio fio, Noite fria não, Sim senhor, como todas de início de inverno, Boa noite, Boa, caminha pelo coletivo que não estava tão cheio como de costume, alcança o meio, vê um acento vago, acomoda-se, percebe que após sentar-se, outro passageiro entra e passando por ele fica ao fundo.
Faz tudo, tudo o que faz é rezando o terço comprado na Igreja Nossa Senhora de Fátima em uma de suas viagens habituais pela fantástica Europa, um homem de intelecto maduro não é homem sem ter conhecido a Europa.
Reza o terço enquanto olha as árvores passando, reza o terço enquanto olha os carros passando, as casas, as placas de anúncio, as de procura-se, as de sexo, percebe ao lado uma senhora, disfarçadamente olha para o outro fingindo não vê-la, Os velhos sentaram a vida toda, ora, agora é a nossa vez, reza, prende o dedo num pai nosso, faz um pedido, tudo bem, Deus perdoa invasões territoriais à custa de sangue, por que não perdoaria um homem de meia idade que nega acento a uma senhora de idade, de outro modo, diga-se de passagem, de muita idade, reza.
Sente a pessoa sentada a sua frente levantar-se, com isso roçar-lhe a perna direita, Desculpe, pensou que o moço daria lugar a velha, mas não, uma delicada flor abriu suas cores revelando suas formas ao cultivador, e uma jovem lívida de cabelos negros se senta, sorri harmoniosamente para ele e recebe um aceno de cabeça, Boa noite, Boa noite, chove, É, bastante, percebe que a jovem carrega ao colo uma criança, É sua, Sim, minha filha, tem uma semana, E como se chama essa coisinha de Deus, Graça, Maria das Graças, como a avó que Deus a tenha, Amém, em meio a conversa ele sente que está sendo vigiado, mas por quem, porque sente os olhos perfurarem a nuca como estilhaços de ferro aquecidos, o sorriso da jovem o acalma.
Continua com suas orações, uma Ave Maria, um pedido, e continua.
A criança no colo da mãe denuncia a fome com um choro terrivelmente desafinado, o sensor materno é ativado e o mamilo libera gotas do suco vital umedecendo a camisa, deixando-a transparente, ele percebe o ato biológico e se ajeita para poder ver e apreciar melhor a cena, a moça com uma das mãos liberta o farto e vívido seio branco, adornado com uma delicada jóia rosa, e eleva a cabecinha da criança ao prazer alimentício, ele por sua vez sente o membro mover-se dentro das calças, sempre carrega um lenço no bolso do paletó, porém dar a mãe tal segredo acabaria com aquela imagem festiva aos seus olhos, os lábios ainda por formar da criança sugando aquele seio delicioso, o cheiro era sentido como um buquê de flores após serem colhidas, o membro se contorce querendo liberdade, seus lábios queriam ser os da criança, suas mãos queriam ser as da menina, pára seu Pai Nosso, o suor desprega de sua testa, o rosto ruboriza, os lábios tremem, e uma mancha seguida de um orgasmo traumático surge, ninguém percebeu, ninguém, aliviado respira, retira o lenço do bolso e seca as gotículas do rosto, a moça vê o lenço, ele lê em seus olhos, entende os pensamentos da jovem, percebe que passara do lugar onde deveria ter descido, puxa a sineta estrangulando-a, caminha inquieto à porta, a moça o segue com os olhos, Será que ela viu a mancha gigantesca em minhas calças, será que percebeu que eu olhava seu seio, a porta abriu, o sentimento de culpa não era maior que o desconforto sentido por estar sendo seguido, Paranóia minha, desce sorrindo, continua a oração.
Enquanto o coletivo se afasta sua respiração se acalma paulatinamente, percebe que não estava sendo seguido, que a moça não o percebera, joga o lenço em um latão de lixo, e como um passe de mágica um temporal cai sobre suas costas, olha para trás e alguns metros à frente o coletivo pára, desce o que parece um homem de estatura colossal, vira-se e aperta o passo, sabe que é ele que o segue desde que saira de casa, sabe que ele é quem o olhava dentro do coletivo, a chuva castiga a cidade, os vapores desprendem-se das casas, dos carros, das bocas-de-lobo, reza com mais fé, será que é fé ou apenas modismo, apenas por ter um pino onde se possa segurar, reza com mais força, está prestes a terminar o terço, sente o cano frio do revolver encostar-lhe à nuca, sente o gosto do chumbo, o cheiro do ódio, o sabor do sangue, não pára de rezar, não pára de pensar na moça, na criança, no seio, no coletivo, a mancha de esperma na calça, que agora a água da chuva misturou como um rio de milhares de crianças afogadas, sente a morte beijar-lhe a testa que outrora estava lavada de um suor pecaminoso, sente o dedo no gatilho, a bala percorrer o cano, penetrar-lhe o crânio, perfurar o cérebro, cai antes de dizer amém.
Flávio Mello