PROSA MITOLÓGICA - CONTO 01 - "EQUIDNA A MÃE DO DESESPERO!"
EQUIDNA, A MÃE DO DESESPERO!
Sou mãe, sou fêmea, sou mulher. Sou fruto da união de Forcis
e Ceto. Nasci para gerar, e por tempos imemoriais cumpri essa função.
Logo cedo me apaixonei pelo poderoso Tifon. Nos casamos e cumpri o
meu destino, de meu ventre vieram: Ortro, Cérbero, Hidra e Quimera.
Mas os deuses não foram piedosos para comigo, pois um a um
meus filhos e filhas sofreram atrocidades nas mãos dos filhos dos
deuses.
Estranho esse destino cruel a mim imposto. Mas, nem mesmo
posso reclamar. Quem vai escutar os lamentos desta mãe? Os próprios
deuses se incumbiram de dizimar minha prole. Não me esqueço de Hidra.
Ela foi a mais mimada das minhas filhas. Por muito tempo a amamentei,
acalentei, protegi. Quando resolveu ficar independente escolheu por
morada o pântano de Lerna.
Afinal ela só queria um canto para si mesma, longe de
problemas e confusões. Mas os humanos acharam que Lerna teria de ser
drenado, que ali a terra seria fértil e muitas plantações poderiam
florescer naquelas terras lamacentas. Hidra não queria sair, lutou
como pôde por sua morada, mas o destino é um deus cruel. No caminho
de minha filha apareceu Héracles, maldito seja Zeus por gerar tão vil
criatura. Ele enfrentou minha cria, e a derrotou, de nada adiantou a
cabeça imortal de Hidra, esmagada que foi por um rochedo. Como troféu
o canalha ainda embebedou suas setas no sangue de minha cria. A
partir daquele momento as flechas de Héracles eram mortais. A única
vingança que foi possível se deu quando esse bastardo atingiu o
centauro Quíron, cujo trágico fim todos sabem. Imortal que era, o
amigo de Héracles não morreu, mas durante anos vagou pela terra,
sofrendo dores atrozes graças ao veneno de Hidra. Até que decidiu
trocar sua imortalidade pela mortalidade de Epimetreu. Assim acabou
morrendo sob a ação do veneno de minha filha, anos após ela estar
morta. Isso foi um pequeno consolo para uma mãe.
E minha querida Quimera? Outro destino trágico que só fez
aumentar meus sofrimentos e minhas angústias. Durante algum tempo ela
foi criada pelo rei de Cária, mas os maus tratos que sempre lhe
infligiram fez com que se rebelasse. Durante algum tempo ela vomitou
seu fogo incessante, como forma de castigar os homens que tão mal a
trataram. Sejam eles de Cária ou da Lícia. Ninguém quis entender a
sua versão dos fatos, suas queixas não foram ouvidas por ninguém
sejam homens ou deuses. E o que foi reservado à minha filha? A morte
nas mãos de Belerofonte.
Acho que da união com Tífon apenas Cérbero, teve um destino
melhor. A ele foi confiada a guarda dos portões do Hades. Ele está lá
agora, cuidando para que as almas dos mortos não saiam do mundo dastrevas. Seus serviços são bons e ele é protegido pelo deus Hades.
Ironia isso não? O irmão do maior algoz de minha família é exatamente
aquele que mantém e protege meu amado Cérbero.
Não posso deixar de citar que o amaldiçoado Zeus, não
bastasse gerar os homens que mataram minhas filhas, ainda é o
responsável pela minha viuvez. Meu marido Tífon se revoltou com os
destinos da vida sob o comando de Zeus, e desafiou o olímpico pelo
trono do mundo. Novamente a tragédia se abateu sobre minha família,
pois meu amado foi fulminado por um raio lançado por Zeus, maldito
seja. Vi quando seu corpo despencou em direção ao Tártaro. Além de
matar meus filhos e filhas ainda ceifou a vida de meu amado. Cem
vezes seja maldito por isso Zeus.
Ortro é um caso a parte. Viúva, só e abandonada, voltei meu
amor para meu filho. E esse amor ultrapassou a relação mãe e filho. O
poderoso Eros acertou meu coração com uma potente flecha, e fiquei
totalmente apaixonada por Ortro. No início ele resistiu, se negou a
ver em mim uma mulher, afinal era sua própria mãe. Mas tanto insisti
e lutei pelo amor de meu filho que enfim consegui.
Unida a Ortro gerei mais duas criaturas: Esfinge e o Leo,
que passou para a história como o Leão da Neméia.
Finda a geração dessas criaturas Ortro saiu de casa. Talvez
arrependido pelo incesto que praticamos. De qualquer forma minha sina
de ver meus filhos e companheiros sendo mortos pelos homens ou pelos
deuses continuou.
Ortro encontrou seu fim nas mãos do odiado Héracles. Ele
guardava os bois do gigante Gerião, vivia uma vida tranqüila e
pacata. Mas o filho de Zeus tinha uma obrigação a cumprir. E meu
amado, filho e amante, pereceu sob as mãos frias do bastardo.
Durante algum tempo fiquei com Esfinge e Leo em casa, tentei
mantê-los por perto de mim, pois temia seu destino.
Leo era admirável, sua pele invulnerável ainda me dava alguma
esperança de que sobreviveria às adversidades da vida. Esfinge, por
sua vez, desde cedo demonstrou predileção por charadas e
adivinhações. Mas a natureza tem de seguir seu rumo, ambos saíram de
casa.
Mas nasci para sofrer pelos filhos. Leo escolheu como morada
a região da Neméia, um pouco distante das grandes cidades humanas.
Aquilo era floresta pura, um ambiente totalmente propício para um
leão. Mas os homens queriam usufruir os recursos da floresta, Leo
achou que era demais. Impôs seu ponto de vista à força. Onde já se
viu, ele chegou àqueles ermos primeiro, os homens nada tinham de
fazer ali.
E novamente o destino coloca Héracles pela frente. Desta vez
pensei que um filho meu conseguiria se impor perante o maldito. Novo
engano, Leo foi asfixiado, sua pele arrancada do corpo por sua
própria pata. O maldito bastardo de Zeus passou a usar a pele de meu
filho como proteção em suas batalhas, uma verdadeira armadura.
Suprema heresia. Cheguei a reclamar esse último pedaço de minha cria,
quase fui fulminada por aquele que se senta supremo no Olimpo. A uma
mãe não foi dado o direito de enterrar condignamente seu próprio
filho.
Meus temos em relação ao destino de Esfinge, a sua mania de
adivinhações, por um tempo lhe garantiu a vida. Ela vivia em um
rochedo perto da cidade de Tebas. A todo viajante que por ali passava
ela propunha seu enigma, devorando aqueles que não conseguissem
responder. Mas Édipo conseguiu desvendar a charada – " Qual o animalque ao nascer anda em quatro patas, ao meio dia se ergue em duas, e
ao entardecer necessita de três?" A resposta foi simples – " O homem
ao nascer engatinha, quando adulto usa os dois pés para caminhar e no
final da vida usa uma bengala para se apoiar".
A surpresa com a resposta certa fez minha filha se suicidar,
jogando-se da beira de um penhasco ali perto.
Seis filhos eu gerei, dois seres eu amei, e todos, com uma
única exceção estão mortos. Seja diretamente pelos deuses, seja por
filhos destes. A quem vou reclamar? Quem vai escutar uma mãe que
tanto sofreu? Por acaso tenho culpa de ser o que sou? Meus filhos
procuraram lugares para morar longe dos homens e dos deuses. Lerna
sempre foi um pântano abandonado, a estrada para Tebas que abrigava
Esfinge quase não tinha movimento. Ortro estava muito distante de
qualquer homem. Quimera só se tornou feroz por causa dos maus tratos.
Meus filhos, que fiz para o destino ser tão cruel com vocês?
Antes tivesse ventre seco, sem filhos não sofreria tanto como agora.
Depois ainda dizem que Equidna é o monstro. Serei mesmo? Ou o
monstro se chama Héracles, Belerofonte, Édipo, Zeus? Pergunto
novamente quem é o monstro, afinal a mãe que perdeu companheiro e
cinco dos filhos fui eu. E os deuses, o que perderam? Ao contrário,
eles geraram aqueles que dizimaram a minha família, me negaram o
direito de poder acalentar meus filhos e filhas.
Sou mulher, sou fêmea, sou geradora da vida.