Uma lição dolorosa
Quatro meses após a morte do pai, o filho de Jussara já estava deitado quando um vizinho da sua idade tocou a campainha. A mãe atendeu. O rapaz contara que precisaria levar um recado urgente do pai a um bairro distante, para uma pessoa que ainda não tinha telefone. Ela olhou o relógio, era quase 23 horas, disse que o filho já estava dormindo, e mesmo que não estivesse não o deixaria sair com o carro, àquela hora, pois ainda não tinha carteira e era inexperiente ao volante. O rapaz insistiu. Ela ia dizer que não o acordaria, quando o filho apareceu à porta e disse:
- Deixa - me ir mãe, tomarei cuidado!
A mãe ficou sem força para dizer não e os dois saíram no carro que já estava na garagem. Ele tinha dezessete anos e a mãe ainda estava pagando a Brasília branca que tinha comprado em doze prestações.
Não demorou meia hora, o telefone tocou. Era Célia, amiga de Jussara, mãe da melhor amiga de sua filha Joseli. O coração da mãe de Rodrigo disparou. Alguma coisa tinha acontecido para a amiga ligar àquela hora. Numa fração de segundo mentalizou toda a situação.
- Jussara, eu estou ligando...
- Aconteceu alguma coisa com meu filho? - interrompeu ansiosa.
- Ele teve um problema com o carro, mas está tudo bem. Ele só está muito nervoso e preocupado contigo.
Jussara nem pensou no carro. Só queria saber como estava seu filho.
- Ele está ai, Célia?
- Está, mas está muito nervoso. Só repete que tu não querias deixá-lo vir e que ainda não terminaste de pagar o carro.
- Deixa-me falar com ele.
Ao pegar o telefone, a primeira coisa que falou foi que não tivera culpa. Que o farol alto de um ônibus fez que batesse com o carro no meio fio e capotasse.
- A senhora nem terminou de pagar o carro, mãe. A Senhora não queria que eu viesse. A senhora tinha razão. Eu não deveria ter saído com o carro à noite.
Estava muito nervoso. O coração acelerado de Jussara só pedia que fosse apanhar o filho e o acalmasse. Um rapaz tão equilibrado que nunca lhe dera preocupações, a não ser as normais de um jovem de dezessete anos. Mas como iria? Não tinha condução. Era nisso que dava. Tentara ajudar alguém a levar um recado urgente e agora estava de mãos atadas, sem poder socorrer o próprio filho. Teria de chamar um táxi, mas como? Nunca precisara fazer isso depois que mudara para aquele bairro. Nem se lembrou do disque – informação. Tentou acalmá-lo:
- Meu filho, não pensa no carro agora. Como está o teu amigo?
- Estão todos bem, só Ricardo machucou o braço.
- Ricardo? Tu não saíste daqui com Alan?
- Eu apanhei os outros na esquina – contou chorando.
- Fica calmo que a gente resolve tudo. Agora eu quero que tu venhas para casa. Deixa-me falar com Célia.
Ela nem esperou que Jussara falasse, disse que o levaria para casa. Em meia hora o filho entrou e abraçou-se à mãe, pedindo desculpas e prometendo trabalhar para pagar o conserto do carro. Contou que estavam com ele quatro amigos, mas só o que estava no banco do carona machucara o braço no asfalto.
No outro dia Jussara foi até o local do acidente. O dono de um bar em frente confirmou a questão do ônibus. Contou que o carro capotou três vezes e caiu em um pequeno barranco. Que os presentes pensaram que tivessem morrido todos. Quando se aproximaram os rapazes começaram a sair um por um e foram aplaudidos quando o último saiu ileso. Ela foi ver o carro de roda para o ar. Caíra sobre um amontoado de ervas trepadeiras que lhe servira como amortecedor do baque.
A Brasília 76, comprada em 1978, ficou toda amassada, mas funcionando. O filho mesmo foi levar para a oficina, pois a mãe precisava trabalhar. Não poderia comprar outra. Ainda faltavam quatro prestações a pagar. Ficou no conserto mais de sessenta dias. O pior era seguir a sua jornada de trabalho, andando nos ônibus lotados. Foi um período muito difícil.
Passado o susto, como medida didática, a mãe reuniu os amigos em casa e conversou. Falou da insistência do colega para que ela acordasse o filho. Ela para prestar um favor, após as vinte e duas horas, deixara o filho dirigir seu carro, coisa que nunca fizera antes. Que a insistência de Alan dizendo que era um recado urgente do pai lhe fizera permitir que saísse. Portanto, seria justo que ajudassem no conserto do carro, que ainda estava pagando e estava praticamente irrecuperável. Não deveria ter cedido à pressão dele, mas já que tinha acontecido, agora tinha de ser encontrada uma saída para se resolver o problema. Falou que daria uns dias para eles falarem com os pais antes de ela mesma procurá-los.
Dois ou três dias depois, o pai de Ricardo, vizinho de Jussara procurou-a em casa e disse que iria colaborar com CR$ 2.000,00. Zeca, filho de uma prima distante de Rodrigo, se propôs a colaborar com CR$ 5.000,00. O pai de Alan, o que tocou a campainha e insistiu para que o levassem de carro se propôs a colaborar com CR$ 5.000,00. O outro não tinha condições de dar nada. O conserto seria CR$ 20.000,00(vinte mil cruzeiros).
Jussara pegou a parte de Zeca e deu ao lanterneiro para a compra de parte do material. Uns quinze dias depois o pai de Ricardo deu a parte dele que foi passado ao lanterneiro. O pai de Alan disse que mandaria no final daquele mês. Ele morava em Caxias e alugou uma casa para os filhos na capital, em frente à casa da mãe de Rodrigo.
Jussara aguardou até o carro ficar pronto. Era preciso pagar o restante do conserto. Como a família do Alan não se manifestara, ela foi conversar com o rapaz.
Eram visinhos e muitas vezes se reuniram em programações em casa de uns e de outros. Ela atravessou a rua e tocou a campainha. Estranhou que não lhe convidassem para entrar. Alan não apareceu. O irmão caçula entrou e chamou a irmã. Jussara meio sem graça, falou que o conserto do carro ficara pronto e se poderia falar com Alan? Ela grosseiramente se manifestou:
- O que nós temos com isso? O carro é seu, então se vire. Eu não vou deixar meu pai mandar dinheiro nenhum.
- Mas foi para dar um recado dele que tirei meu filho da cama, quase meia noite para levar seu irmão. E ele insistiu muito para que eu o fizesse.
- Não me interessa seus argumentos. O assunto está encerrado. Por favor, não nos procure mais e nem incomode meu pai com seus problemas.
Jussara voltou para casa e contou ao filho. Ele disse que era para deixar isso pra lá, que iria trabalhar para ressarcir a mãe. No dia de apanhar o carro já consertado, Rodrigo disse que não iria. Só se a mãe fosse junta. Ela o atendeu, mas fez questão de que ele dirigisse até em casa.
Só muito mais tarde, Rodrigo já adulto, contou que ele e os amigos tinham combinado de pedir o carro para saírem. Que realmente havia o tal recado a ser dado, mas ele já sabia que o colega iria pedir e fingira estar dormindo.
© Benedita Azevedo