Rotineira Solidão

Ela chegou tarde, bateu a porta com tanta força que quase colocou o prédio abaixo.

Jogou a chave com tanta estupidez sobre a mesa, que o chaveiro ricochetou e foi parar num canto qualquer da sala. Pingou umas gotas de uísque dentro do copo e inundou a mesa.

Sentou-se na poltrona pegou o controle da tv, sua impaciência impedia que ela escolhesse um canal, freneticamente passava um a um sem prestar a menor atenção. Pegou um livro que estava ali ao lado, mas antes mesmo da primeira página atirou-o a estante.

Despiu-se foi ao banheiro, mas de lá bradou alguns xingamentos, por conta da falta de água, pensou em ligar para o síndico e participá-lo do problema, mas logo desistiu antevendo as desculpas, que seria obrigada a ouvir, e que mais lhe esquentaria a cabeça.

Pegou na bolsa um folheto que recebera na rua, dizia em palavras garrafais: “resolvemos todos seus problemas”, começou a discar, mas logo desistiu estava mais disposta a dialogar com o copo do que com um desconhecido.

Sentia uma angústia fremente, ia de um lado ao outro daquela pequena quitinete. Revirava o pescoço, ato típico de quem está nervoso, como se assim pudesse embaralhar todos os pensamentos e na tirada de um leque de novas idéias pudesse achar uma que a distraísse.

Pensou em escrever um poema, mas atirou a caneta a um canto para fazer companhia com as chaves, como se ela fosse a culpada de a tinta não registrar o que a mão tinha para escrever. Colocou seus discos no colo e foi selecionando os quais queria, mas logo desistiu novamente, todos escolhidos eram depressivos. Pensou em ir para a cozinha pegar um cigarro ficou com ódio, havia parado de fumar pela manhã, afogou também todos os calmantes na privada feita na mesma promessa dos cigarros, e ficou assim sem opção de deixar de ser nada, pois era justamente o que ela pensava ser nessa madrugada.

Num dado momento riu-se da lembrança dela no banheiro do escritório que trabalha, aonde repetia um tantra dita por uma colega, “você vai ser feliz”, isso ela disse mais de cinqüenta vezes, e deve ter surtido mais efeito aos azulejos que estavam reluzentes, do que a ela.

Quis ligar para uma amiga, mas na agenda não tinha nome de nenhuma, apenas contatos profissionais e de antigos namorados, pensou em ligar para um dos antigos casos, desistiu, pois temia acordar pior do que já estava se sentindo.

Deitou-se tentou contar carneirinhos, mas sempre perdia a conta por ser assaltada por lembranças acontecidas durante o dia, voltava a contar, mas avançava muito pouco, e com raiva queria ter o poder de jogar no canto junto com a chave e a caneta todos aqueles carneiros inúteis, que poderiam continuar pulando independente de sua contagem.

Pegou o copo chupou as ultimas gotas de uísque, pois não se prevenira e não comprou outra garrafa, a bebida estava fora da promessa, mas estressada do jeito que estava esquecera de reabastecer seu bar. Pensou em fazer com o copo o mesmo que o mundo vinha fazendo com ela, mas deixou pra lá, pois teria muito trabalho recolhendo cacos de vidro no café da manhã.

Sentou-se na cama pegou uma foto dos filhos que moravam com o ex-marido numa outra cidade distante dali, pensou em ligar e dizer que os amavam incluindo aí o ex-marido, e dizer que tinha sido tola.

Pegou o celular, tremendo começou a discar, esperou alguns segundos enquanto o aparelho tocava, escutou do outro lado um alô vigoroso, sensual, que ganhou uma rouquidão costumeira dada após despertarmos, que a fizera estremecer por alguns instantes. Com o passar do tempo e com seu silêncio a voz ficara mais trovoada, mais nervosa, de repente o ex-marido sem saber que se tratava dela no outro lado, que estavam assim tão pertos e tão distantes cuspiu uns palavrões antes de desligar, e disse mais, disse que deviam prender essas pessoas que ligavam para a casa dos outros para fazer trotes na madrugada. Ela desligou o telefone e o jogou no canto da sala conhecido aqui da nossa história como se tivesse nas mãos um torrão de brasa. Ela mesma acabou se jogando no mesmo canto e, lá ficou por quase duas horas chorando, acabou adormecendo, como que se assim estivesse lavada a alma. Acordou com dor de cabeça, mas alegre de ter novamente o dia, o trabalho, e os amigos circunstantes para lhe distrair a tristeza até que novamente o dia anoiteça.

E comece mais uma madrugada de rotineira solidão.

09/09/2007

Paulo Valadares
Enviado por Paulo Valadares em 13/05/2008
Código do texto: T987934
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