Não se Perca de Mim
Penso: já é hora de trocar a música importada, anódina, insossa que está tocando na rádio FM pela canção de Caetano Veloso. Ligo meu CD-player, coloco o disco e a primeira música escolhida começa a soar: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu...” Mas a canção que mais desejo mesmo ouvir vem depois. Acerto os comandos do aparelhinho e aperto a tecla Repeat, incitando-o a tocar sem parar mais essa outra velha (e eterna) música de carnaval: “Chuva, Suor e Cerveja”. E assim, após o solo inicial de guitarra, vem o refrão, que se repete em um quase sem fim: “Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça...”
Estamos em um dia de meados de 1995, no Rio de Janeiro, a pauta do dia é outra, mas o “não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça” e o clima de carnaval baiano tomam meus sentimentos. Tenho trabalho a fazer, mas sou impelido a escrever estas linhas a jato contínuo, pela canção que traz questões do meu coração e evoca outra época...
Salvador, verão de 1973: tinha 14 anos e havia chegado à Bahia de carona. Era madrugada de quarta-feira de cinzas e, circulando pelas ruas da cidade com uns amigos, paramos à frente de um clube. Reparei logo em uma moreninha atraente, mais ou menos da minha idade, com uma pinta no rosto e vestida com bustiê e saiote brancos. Nossos olhares se cruzaram, sorrimos um para o outro, falamos (ela era carioca também) e tudo foi muito rápido. Beijos, abraços e carícias encostados os dois a um canto. Ela queria entrar no baile do clube, mas desistiu quando eu disse que essa não era minha vontade. (Carnaval na Bahia não é para brincar em clube, mas na rua, atrás do trio elétrico.)
O envolvimento foi relâmpago. Tanto que, meia hora que havia conhecido a moça, estávamos combinando de ir os dois juntos para Ilhéus, já, quando alvorecesse. A bolinação e a conversa amorosa continuaram até que...
Me deu uma forte vontade de ir ao banheiro, para demorar. Ora, na Salvador suja de carnaval, onde até as ruas cheiram a urina, onde encontrar um banheiro limpo? Naturalmente, pensei, só na casa em que estava hospedado. Expliquei a situação à menina e convenci-a a acompanhar-me até em casa, que estava longe.
Pedimos e pegamos carona no carro de um casal desconhecido, que rumava para o Farol da Barra, próximo de casa. O carro foi descendo as ladeiras de Salvador até chegar na primeira praia. E eis que fura um pneu.
O que fazer? A vontade de aliviar-me era cada vez mais intensa. Mas não podíamos abandonar o casal que nos dera carona com o pneu furado. A solução que encontrei foi deixar lá a moça que me acompanhava, enquanto eu, apertado, me dirigiria a pé até em casa. Voltaria depois ao mesmo lugar, para reencontrá-la.
Esse foi meu erro capital. Deveria ter me aliviado na praia, deserta àquela hora da madrugada, mesmo sem papel higiênico. Poderia me lavar no mar da Bahia...
Mas não foi isso que fiz. A minha educação não permitiu nem ter tal idéia na hora. Marchei para casa, que ainda estava bem distante. Cheguei, fiz as necessidades, cumpri o protocolo e rumei para o lugar onde os havia deixado.
Cheguei ao local do incidente do pneu furado cerca de hora e meia depois de ter-me separado da minha companhia e do outro casal. Mas não encontrei nenhum sinal de carro, pneu furado e muito menos do principal, a moça.
Lembrei-me então do clube. Talvez ela tivesse voltado lá e entrado. Iria esperá-la no final do baile.
Dito e feito. Depois de ter regressado ao clube, chegou a alvorada e o final do baile, e lá estava ela, no meio da multidão que saía. Beijamo-nos, explicamo-nos, falamos e combinamos: o nosso compromisso de ir para o sul da Bahia estava de pé. Acertamos de nos encontrar às nove horas daquela manhã. Despedimo-nos, e fui de ônibus até em casa.
Às nove lá estava eu na rodoviária, de mochila pronta. O tempo foi passando e nenhum sinal da moça. Ela não veio. Nunca mais a vi.
Todo o sucedido me fez entrar em um processo, temporário e controlado, de quase-loucura. Acabavam-se assim os dias de diversão em Salvador para o adolescente que eu era então. Ainda houve outros episódios comigo na Bahia, mas terminei por retornar ao Rio, onde morava e moro até hoje.
O último lance dessa história ocorreu quando findaram as férias e retornei às aulas no colégio. Encontrei uma nova colega, de outra turma que não a minha, que se parecia bastante com a imagem fugidia que tinha daquela moça. Morena e com pintinha no rosto, aproximadamente da mesma estatura. Indaguei à colega se não havia passado o carnaval em Salvador, fiz mais outras perguntas, enfim, queria saber se não era ela a moça do sucedido. Não era, é claro. Ou seria? Ver, em outra pessoa, a menina de quem me havia enamorado e perdido em Salvador fazia parte do meu processo de quase-loucura na época.
Vinte e dois anos passados, cá estou terminando de escrever estas linhas, ouvindo a música de Caetano Veloso repetir sem parar: “Não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça...”