UMA MULHER MUITO ESPECIAL
As quatro da manha ela já estava de pé. Antes de sair de casa, olhava o marido adormecido, fazia um gesto na boca de desaprovação. Depois olhava as crianças deitadas numa esteira surrada sobre o chão de terra batida. Alguns descobertos e expostos a friagem da madrugada. Ela os cobria com lençois esfarrapados e carinhosamente beijava uma a um. Eram seis meninos e três meninas. Geralmente não havia nada para comer no desjejum. Eram raros os dias em que a família fazia as refeições completas . Por isso que ela saia de casa de madrugada para aventurar a comida do dia.
Na safra da manga ela enchia o balaio e ia vender as frutas na feira da cidade. Geralmente percorria duas léguas, ia cantarolando, parecia não sentir cansaço. Voltava para casa à tardinha. Do apurado trazia um quilo de farinha, rapaduras, um pedaço de charque e algumas batatas doces.
Chamava-se Felesmina. Cabocla bonita, faceira. A noves barriga não lhe tiraram a formosura, se não fosse a vida sofrida, daria uma bela duma cabrocha. Tinha os olhos castanhos, mas muito claros que se destacava na pele escura. A cabeleira farta e cacheada lhe dava um ar de mulher selvagem. De tanto carregar peso na cabeça, adquiriu uma postura reta e um porte elegante. Ela não era vaidosa,mas qualquer trapo de chita lhe caia muito bem. Quando passava na rua carregando a lata d’água na cabeça, os cabras ficavam de queixo no chão: a água descia-lhe sobre o corpo bem feito, o vestido molhado colava no corpo exibindo a belíssima silhueta. Ela não tinha malícia e nem era ciente da sua beleza. Talvez aquele jeito ingênuo de ser era o ponto forte da sua sensualidade. Adorava crianças, e exercia um enorme fascínio sobre elas. Brincava com elas como se fosse da mesma idade. Jogava bola com os meninos na rua, soltava pipas,adorava uma cantiga de roda, ria a toa. Mas era um riso solto, alegre, de quem tem a pureza dos anjos.
Mas ao mesmo tempo era uma mulher séria, religiosa, devota de Nossa Senhora das Dores, se dava ao respeito. Ai do cabra enxerido que se metesse a besta! Ela ficava braba feito onça pintada.
“Me arrespeite sujeito! Sou uma mulé casada, mãe de famia. Cumigo num tem sem-vergonhice não sinhô!”
Êita dona arretada! Bradavam os cabras.
Casara-se muito jovem. O casamento foi um meio que ela arranjou para fugir dos maltratos da madastra. Que ilusão! O marido “não dava um prego numa barra de sabão”. Era um negão bonito, dengoso, cheio de manha. Mas muito preguiçoso, não gostava de pegar no pesado. Mas se via obrigado a trabalhar na lavoura, pois só assim garantia um ranchinho para abrigar a família . Na época da colheita quem carregava o fardo maior era ela. E assim iam vivendo.
Ela era uma mulher disposta, trabalhadeira, cozinheira de mão cheia. Em época de festa não lhe faltava trabalho, pois era sempre chamada para fazer os banquetes dos “coronéis.” Neste período não faltava comida em casa, pois o que sobrava dos banquetes era lhe dado como forma de pagamento.
A seca quase não atingia aquele lugarzinho escondido no agreste paraibano, mas a distância tornava a vida muito difícil naquelas brenhas, pois não havia energia elétrica e nem rodovias por perto. Quando não chovia na região, o sofrimento era terrível!
Muitas vezes durante á noite, quando a família ainda não tinha se alimentado. Ela reunia as crianças famintas no terreiro, e para aliviar a tensão causada pela fome ela dizia:
- vamos brincar de faz de conta?
- Vamos! Diziam as crianças desanimadas.
Muitos choramingavam mas gostavam da brincadeira:
- Faz de conta que a lua é um enorme queijo de coalho, feche os óios , vamos ver quem come o maior pedaço?
As crianças fechavam os olhos e mascavam o vento com maior prazer. Ela os observava com um nó na garganta, engolia as lágrimas para que elas não a vissem triste.
Mas no dia seguinte ela sempre dava um jeitinho de matar a fome da família. logo cedinho como de costume se embreava na mata, e com um estilingue caçava rolinha, teju, preá e outros bichos do mato. Às vezes feria os pés nos espinhos e nas pedras. Não temia os bichos peçonhentos, fora picada por cobras algumas vezes.Curava o veneno mascando folhas no mato, mas nunca chagava em casa de mãos vazia.
Não freqüentou escola. Mas soube dar uma educação esmerada aos filhos. Os ensinou a respeitar as pessoas; a amar a natureza; a rezar o Pai Nosso e a Ave-Maria e a honrar pai e mãe.
Não se queixava das agruras da vida e sempre arranjava um jeitinho de espantar a tristeza.
Ela morreu de doenças de Chagas, ainda muito jovem, aos cinqüenta e oito anos de idade.
*Eis aí uma estória comum igual a tantas outras... vivida por uma mulher comum, mas dotada de uma extraordinária capacidade de amar que contagiava a todos que dela se aproximava . Um ser humano simples igual a tantos outros que passam invisíveis diante dos olhos da sociedade; mas uma pessoa destemida e que apesar da situação lastimável em quem que vivia, não se entregava ao sofrimento. Lutou até as últimas para manter a família unida. E conseguiu!
Quem sabe ela virou um anjo, e está voando agora pelo céu se fartando com um bom pedaço de queijo de coalho?
As quatro da manha ela já estava de pé. Antes de sair de casa, olhava o marido adormecido, fazia um gesto na boca de desaprovação. Depois olhava as crianças deitadas numa esteira surrada sobre o chão de terra batida. Alguns descobertos e expostos a friagem da madrugada. Ela os cobria com lençois esfarrapados e carinhosamente beijava uma a um. Eram seis meninos e três meninas. Geralmente não havia nada para comer no desjejum. Eram raros os dias em que a família fazia as refeições completas . Por isso que ela saia de casa de madrugada para aventurar a comida do dia.
Na safra da manga ela enchia o balaio e ia vender as frutas na feira da cidade. Geralmente percorria duas léguas, ia cantarolando, parecia não sentir cansaço. Voltava para casa à tardinha. Do apurado trazia um quilo de farinha, rapaduras, um pedaço de charque e algumas batatas doces.
Chamava-se Felesmina. Cabocla bonita, faceira. A noves barriga não lhe tiraram a formosura, se não fosse a vida sofrida, daria uma bela duma cabrocha. Tinha os olhos castanhos, mas muito claros que se destacava na pele escura. A cabeleira farta e cacheada lhe dava um ar de mulher selvagem. De tanto carregar peso na cabeça, adquiriu uma postura reta e um porte elegante. Ela não era vaidosa,mas qualquer trapo de chita lhe caia muito bem. Quando passava na rua carregando a lata d’água na cabeça, os cabras ficavam de queixo no chão: a água descia-lhe sobre o corpo bem feito, o vestido molhado colava no corpo exibindo a belíssima silhueta. Ela não tinha malícia e nem era ciente da sua beleza. Talvez aquele jeito ingênuo de ser era o ponto forte da sua sensualidade. Adorava crianças, e exercia um enorme fascínio sobre elas. Brincava com elas como se fosse da mesma idade. Jogava bola com os meninos na rua, soltava pipas,adorava uma cantiga de roda, ria a toa. Mas era um riso solto, alegre, de quem tem a pureza dos anjos.
Mas ao mesmo tempo era uma mulher séria, religiosa, devota de Nossa Senhora das Dores, se dava ao respeito. Ai do cabra enxerido que se metesse a besta! Ela ficava braba feito onça pintada.
“Me arrespeite sujeito! Sou uma mulé casada, mãe de famia. Cumigo num tem sem-vergonhice não sinhô!”
Êita dona arretada! Bradavam os cabras.
Casara-se muito jovem. O casamento foi um meio que ela arranjou para fugir dos maltratos da madastra. Que ilusão! O marido “não dava um prego numa barra de sabão”. Era um negão bonito, dengoso, cheio de manha. Mas muito preguiçoso, não gostava de pegar no pesado. Mas se via obrigado a trabalhar na lavoura, pois só assim garantia um ranchinho para abrigar a família . Na época da colheita quem carregava o fardo maior era ela. E assim iam vivendo.
Ela era uma mulher disposta, trabalhadeira, cozinheira de mão cheia. Em época de festa não lhe faltava trabalho, pois era sempre chamada para fazer os banquetes dos “coronéis.” Neste período não faltava comida em casa, pois o que sobrava dos banquetes era lhe dado como forma de pagamento.
A seca quase não atingia aquele lugarzinho escondido no agreste paraibano, mas a distância tornava a vida muito difícil naquelas brenhas, pois não havia energia elétrica e nem rodovias por perto. Quando não chovia na região, o sofrimento era terrível!
Muitas vezes durante á noite, quando a família ainda não tinha se alimentado. Ela reunia as crianças famintas no terreiro, e para aliviar a tensão causada pela fome ela dizia:
- vamos brincar de faz de conta?
- Vamos! Diziam as crianças desanimadas.
Muitos choramingavam mas gostavam da brincadeira:
- Faz de conta que a lua é um enorme queijo de coalho, feche os óios , vamos ver quem come o maior pedaço?
As crianças fechavam os olhos e mascavam o vento com maior prazer. Ela os observava com um nó na garganta, engolia as lágrimas para que elas não a vissem triste.
Mas no dia seguinte ela sempre dava um jeitinho de matar a fome da família. logo cedinho como de costume se embreava na mata, e com um estilingue caçava rolinha, teju, preá e outros bichos do mato. Às vezes feria os pés nos espinhos e nas pedras. Não temia os bichos peçonhentos, fora picada por cobras algumas vezes.Curava o veneno mascando folhas no mato, mas nunca chagava em casa de mãos vazia.
Não freqüentou escola. Mas soube dar uma educação esmerada aos filhos. Os ensinou a respeitar as pessoas; a amar a natureza; a rezar o Pai Nosso e a Ave-Maria e a honrar pai e mãe.
Não se queixava das agruras da vida e sempre arranjava um jeitinho de espantar a tristeza.
Ela morreu de doenças de Chagas, ainda muito jovem, aos cinqüenta e oito anos de idade.
*Eis aí uma estória comum igual a tantas outras... vivida por uma mulher comum, mas dotada de uma extraordinária capacidade de amar que contagiava a todos que dela se aproximava . Um ser humano simples igual a tantos outros que passam invisíveis diante dos olhos da sociedade; mas uma pessoa destemida e que apesar da situação lastimável em quem que vivia, não se entregava ao sofrimento. Lutou até as últimas para manter a família unida. E conseguiu!
Quem sabe ela virou um anjo, e está voando agora pelo céu se fartando com um bom pedaço de queijo de coalho?