O incentivo do desespero.

Era final de ano.

Época de festas natalinas, época de confraternização entre as pessoas.

Época na qual se fazem planos, mesmo que inconscientemente, pensando no próximo ano que virá, e que todos se sentem um pouco mais leves, mais receptivos, uns aos outros. Foi assim que todos nós aprendemos a fazer, desde criancinhas, criados em um país predominantemente católico.

Quando nos tornamos adultos, na adolescência principalmente, consideramos bobagem e até repudiamos algumas coisas que fazíamos quando crianças, coisas que sentíamos em algumas épocas, como agíamos em determinadas situações. Mas não se iludam caros leitores, pois lhes asseguro que certas coisas que se aprende quando criança permanecem de tal forma encrustradas na alma, esta entidade subjetiva do individuo, que mesmo que ele não as veja e zombe destas, elas ali estão (e sempre estarão) e, algum dia, cobram seu reconhecimento. Com a velhice, isto que estou afirmando fica mais fácil de se enxergar, palpável, e então esse repúdio e negação se transformam, para alguns, em saudades. Mas não é especificamente disso que trata esta história. Voltemos à ela.

As ruas de São Paulo estavam mais iluminadas.

Milhares de quilômetros de fios com lampadinhas “made in Taiwan”, ouro e prata e multi-coloridas, enroladas nas árvores da cidade, nos postes, fachadas dos edifícios e por todos os lados. Dentro das casas, escondido da visão geral, o cenário era o mesmo. Todos gostam de montar uma arvorezinha de natal, daquelas de plástico e tirinhas de celofane brilhante, que fica guardada o ano inteiro em um armário e nesta época dá as caras ou uma natural mesmo, um bonito pinheirinho, que é comprado para este fim e que só deus sabe qual destino terá depois de cumpri-lo. As pessoas gostam de planejar a ceia de natal, de pensar nos pratos que farão (há os que gostem de pensar, como é meu caso, no que comerão na ceia), nas pessoas que lá estarão, nos presentes e tudo o mais. Sim, tudo isso junto somado ao famoso e indefinível “espírito natalino” dão a todas as coisas uma certa leveza, um ar diferente nesta época do ano.

Na essência a cidade era a mesma. O trânsito caótico da maior cidade do Brasil ia bem, obrigado. O barulho ensurdecedor de todas as coisas, as buzinas nervosas dos automóveis, os motoboys voando em suas motos no meio destes, os ônibus lotados, as estações de metrô apinhadas, a falação interminável, o vai e vem inacabável de pessoas de todos os tipos, raças, credos, sexos, em todos os lugares.

As reuniões de negócios continuavam sendo travadas dentro dos escritórios a todo vapor, os milhões sendo movimentados, as rodas da engrenagem girando. Mas ainda assim, quando se terminava uma destas reuniões o individuo virava-se ao outro, que perdeu ou ganhou (mas normalmente todos ganham, esta é a regra do jogo), apertava-lhe a mão e dizia:

– Tenha um feliz natal!

E nas ruas, a imensa maioria de pessoas que nunca participou (nem participará) de uma reunião destas tocavam suas vidas, praticavam seus atos, dentro da esfera social a qual pertenciam, e diziam a mesma coisa: - Tenha um feliz natal!- E assim tudo fluía, normalmente.

Eduardo vinha andando pela Avenida Paulista enquanto muitas destas reuniões, quedas de braços de milhões de reais ou outras moedas, estavam sendo travadas acima do solo, sobre a sua cabeça. Estava com o pensamento concentrado em uma casinha de madeirite, provisoriamente construída para abrigar um mestre-de-obras, de onde acabara de sair. Fora fazer uma entrevista de emprego pleiteando ao cargo de ajudante de pedreiro, em uma obra de um novo edifício que estava sendo construído ali. Em sua cabeça, via nitidamente o rosto do homem que o entrevistara, um sujeito rechonchudo, camisa listrada de branco, azul e preto, suja, cabelos desgranhados e barba por fazer.

Quando Eduardo chegara ao local, bem cedo, já haviam outros lá e tivera de esperar em uma fila. Pelo menos uns quatro ou cinco entraram na casinha de madeirite antes dele e talvez tenha sido esta a causa da recepção que o homem da camisa suja dispensou a ele. Aquele não era um homem para fazer esse tipo de serviço administrativo- pensava- Era um matuto! Ele já demonstrava claros sinais de irritação, estava aborrecido com tudo aquilo quando Eduardo entrou e, após uma ordem sua, com um aceno de mão, sentou-se na cadeira à sua frente. O homem o perscrutou com o olhar, não disse nada. Repassou de novo mentalmente o diálogo que tivera com ele:

- Bom dia senhor- Havia começado, com um leve sorriso sem mostrar os dentes.

- Dia! Que cê já fez em construção?- Resmungou o homem secamente, com acentuado sotaque nordestino, não retribuindo de forma alguma o meio sorriso.

- Bem, nada senhor. Nunca trabalhei nessa área- Eduardo disse como que se desculpando- Eu sou estudante. Mas preciso trabalhar e não há empregos por aí. Eu vi o anúncio no jornal e vim. Tenho saúde e disposição, posso fazer o serviço, preciso apenas aprender.

- Istudante? Aqui num é escola rapaiz! Ninguém ta aqui pra ensiná não!- disse o homem, agora com um largo sorriso de satisfação, aonde se via que faltavam bem uns três dentes- Num dá pro cê não! Fala pra entra otro aí.

- Senhor, por favor.- Eduardo olhava para o homem, agora suplicante- É natal, eu tenho um filho, eu preciso muito trabalhar. Como disse sou estudante e procurei bastante por serviços mais adequados a mim, mas não consegui. Estou desempregado há seis meses e preciso trabalhar- Disse o “preciso” com bastante ênfase- Prometo me esforçar e fazer tudo o que me pedirem. Por favor, senhor.

O homem não sorria mais, mas disse- Não! Num dá! Fala pro otro entra aí e me deixa terminá cum essa merda logo.

Derrotado Eduardo levantou-se e saiu. Não disse nada ao próximo na fila, que vendo-o sair entrou na casinha por conta própria. Sentia-se o pior dos homens, sentia uma impotência terrível, uma espécie de náusea que lhe preenchia e subia pela garganta. Pensou em João e em Clara, seu filho e esposa, e teve uma forte vontade de chorar. Era natal, ele queria comprar presentes para os dois,queria poder fazer uma ceia de natal, nada demais. Ele sempre dissera que seu filho teria de tudo, que seria um príncipe entre os homens. Sentia-se um fracassado, e sentia vontade de chorar.

Não o fez, e continuou a caminhar.

Tudo isso acontecera há alguns minutos, uma meia hora. Agora, enquanto caminhava em direção há um ponto de ônibus e lembrava-se da cena, Eduardo já não sentia a mesma náusea, nem vontade de chorar. Sentia, sim, uma raiva fria crescendo dentro dele. Sentia que fora injustiçado por aquele homem, sentia que fora injustiçado por muitos, por todos.

Sentia-se esquecido por deus.

Lembrava-se do sorriso sem dentes e pensava – Analfabeto de merda. Filho da puta! Deixe estar. Esse filho da puta será sempre isso, um peão, filho da puta!- Esta raiva foi tomando força, foi crescendo, encorpando, tomou forma e trouxe a Eduardo alguns pensamentos que não lhe eram comuns. Percebeu que, de algum modo, gostava do que agora sentia e, aos poucos, a sensação de impotência foi o abandonando. De repente, ele sabia agora o que deveria fazer. -O mundo assim o quis- pensou, e sorriu triste consigo mesmo.

Eduardo pegou um ônibus e foi para casa. Ainda tinha na cabeça a imagem do desprezo no rosto do cobrador, quando lhe pediu para passar por baixo da catraca, quando entrava no seu sobrado na zona leste de São Paulo. A casa de Eduardo era simples, bem humilde mesmo, com manchas pretas de umidade e infiltrações nas paredes, algumas dessas paredes com tijolos a mostra. Era pouco mobiliada, tinha o essencial para se viver. Uma mesa de plástico logo à entrada que era a cozinha da casa, um fogão de quatro bocas simples e enferrujado, um sofá muito velho, sujo e rasgado, uma estante gasta com alguns poucos objetos, dentre eles um rádio pequeno, velho. Não tinham televisão. Haviam dois quartos de dormir na casa, uma cama de casal em um e um pequeno berço no outro, presente de um amigo quando do nascimento de João. Não havia ninguém na casa conforme Eduardo já sabia. Clara era auxiliar administrativa em uma pequena empresa, estaria no trabalho agora e já teria deixado João com sua mãe, que é quem cuidava do bebê quando os pais não podiam. Caminhou até seu quarto.

Eduardo entrou no quarto simples e agora silencioso no qual dormia com sua esposa. Olhou em volta as poucas coisas que possuíam, a foto sobre a cabeceira, a cueca samba-canção que havia tirado de madrugada quando saíra e jogara em cima da cama, que ainda estava desarrumada. A camisola cor de champanhe de Clara, que ele tanto gostava, jogada também na cama. Lembrou-se de sua esposa. Lembrou do seu sorriso caminhando pelo quarto, vestindo a peça de roupa e mostrando-a a ele, pela primeira vez. Lembrou-se de como os dois largaram tudo, pelo amor que tinham, arriscando-se a viver juntos na casinha que a irmã dela os emprestou quando, ainda namorados, ela descobriu que estava grávida.

Deteve-se por um instante, meio travado, como se lutasse consigo mesmo. Balançou a cabeça bruscamente, deu uma fungada e prosseguiu até o armário, abrindo-o. Olhou para seus livros, arrumados meticulosamente no armário, por ordem alfabética dos nomes dos autores. Uma tristeza infinita o assaltou.

Eduardo era aluno do segundo ano da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo. Lembrou-se rapidamente de como foi difícil passar no vestibular, como sofreu e estudou, com livros emprestados, em bibliotecas públicas, por dias e noites, muitas sem dormir.

Como havia se sentido feliz quando viu seu nome lá, cercado por outros jovens, em uma parede azulada, numa lista cujo titulo era, em caixa alta, “APROVADOS”. Havia se sentido um rei, sentia que o mundo era seu. Nunca esquecera-se da sensação, sublime, que ele equiparava em felicidade e satisfação apenas ao momento em que viu seu filho, no berçário do hospital, pela primeira vez. Pensou na rotina da Faculdade, em seus colegas de turma, nas conversas cultas e interessantes que travavam, na poesia e na literatura, nos sonhos da juventude que compartilhavam, todos eles. Como gostava de estar ali. Como gostava de tudo isso. Era o seu mundo, seu destino.

Como cheguei a isso? -pensou- O que aconteceu, meu deus? Novamente, a súbita vontade de chorar.

Reprimiu este desejo com muita força de vontade e abriu a terceira gaveta do lado direito do pequeno armário. Tirou algumas meias e lenços e achou uma caixa de charutos com o desenho gravado na madeira de um índio com um charuto na boca, um arco no ombro, onde se lia “Nativo Del Caribe-Siboney”. Abriu a caixa e lá estava ele. Um Colt calibre 32 cano curto, prateado, reluzindo, o cabo branco de madrepérola e quatro balas soltas. O revólver pertencera a seu pai e, quando este falecera, ficou para Eduardo. Não sabia o que fazer com a arma, havia pensado em vendê-la algumas vezes, mas achava que seu pai não teria gostado disso.

Lembrou-se dele dizendo: - Esta é uma arma para colecionadores. Foi com uma dessas que, em cinqüenta e quatro, Getúlio se matou.

Sim! Agora ela iria servir para fins menos dignos de registro histórico- Pensou tristemente.

Colocou as balas no tambor da arma, travou-a e a colocou na cintura. Guardou a caixa de charutos no mesmo lugar, lançou um último olhar triste para seus livros, fechou o armário e saiu.

Caminhando pelo pequeno corredor Eduardo parou na porta do quartinho de João e olhou para dentro. Lá estava o berçinho branco e azul, iluminado pelo sol que entrava pela janela. Os aviõezinhos de plástico que pendiam do teto em espiral pendurados sobre o berço, os quais o bebê ficava tentando pegar. Visualizou a cena nitidamente em sua cabeça, João olhando para o brinquedinho, sorrindo, fazendo aqueles barulhos engraçados que os bebês fazem.

D... De... DEUS!- Gaguejou, num grito para o vazio- Eu te amo filho- balbuciou, para si mesmo- Eu te amo!

Eduardo encostou as costas contra a parede e seu corpo foi escorregando, lentamente. As pernas lhe faltaram. Eduardo agora chorava copiosamente. Soluçava e tentava enxugar os olhos, desesperadamente, mas as lágrimas vinham em profusão, em cascatas, e ele não conseguia parar. Batia com as palmas das mãos em suas têmporas e chorava, e chorava, impotente. Ficou assim, na mesma posição tremendo, encolhido e desesperado, por quase 40 minutos.

Começou a se acalmar. Afinal, ele sabia o que tinha que fazer.

Foi até a pia e lavou o rosto lentamente, com calma, as mãos não tremiam mais. A raiva fria voltara.

Com um último longo olhar para o interior de seu humilde e tranquilo lar, como se desse adeus à sua vida e as suas coisas como elas foram até então, fechou a porta da casa e ganhou a rua.

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