OLHOS DE CÉU AZUL

Uma vez por semana ela passava fazendo a coleta dos mantimentos doados. Caminhando vagarosamente com seus passinhos curtos e seus sapatinhos de feltro, tão pequeninos que mais pareciam ser os sapatos de uma criança. Usava na cabeça um lenço com flores roxas que destoavam do restante das roupas sempre de cores escuras para demonstrar sua viuvez constante.
Andava sempre de cabeça baixa olhando para o chão e carregando o enorme e pesado saco de algodão alvejado onde colocava separadamente as doações recebidas. Sempre trazia bem dobradinhos os saquinhos plásticos, de arroz, açúcar ou de macarrão, onde ia juntando o que ganhava e acomodando dentro saco branco. Algumas vezes trazia junto nesta peregrinação de casa em casa, o seu filho mais novo, que era portador de Síndrome de Down. Na época, creio que ela já devia estar com mais de 70 anos e o filho, por volta dos 50 anos. Era sempre na sexta feira entre nove e dez horas, que ela chegava com seu silencio limpinho, quebrado apenas pelo barulho do desenrolar dos sacos plásticos. Quando batia palmas em frente ao portão da minha casa, evitando sempre a campainha,  a minha mãe já havia separado as doações e estavam sobre a mesa. Minha mãe fazia questão que eu ajudasse a levar os pacotes de arroz, açúcar, bolachas, óleo e às vezes ovos, que eram arrumados entre duas caixas de papelão e embrulhados com jornal para que ficassem mais protegidos. Abríamos o enorme portão e ela ficava ainda menor diante de nós como se quisesse se resguardar na sua humildade.
Minha mãe sempre a convidava para vir até um gazebo que tinha no jardim e oferecia um chá e um pedaço de bolo que ela aceitava sempre com resignação. Nunca falava mais que o necessário para agradecer e pouco sorria com sua boca murcha. A pele tão fina e enrugada contrastava com o azul suave dos olhos sempre espremidinhos entre as milhares de rugas que lhe sulcavam a face. Uma única vez falou sobre sua vida. Contou de sua viuvez de mais de 50 anos, falou das dores e das amarguras de ter que criar os filhos ainda pequenos e da benção de ter um filho “diferente” dos demais, um anjo que enxugava as suas lágrimas. Disse das tristezas e das agruras de perder seu pedacinho de terra e do abandono pelos filhos sadios. Falou da fome e do desengano e enquanto falava, os seus olhos se enchiam de lágrimas. Ela conversava com minha mãe e o  seu filho “diferente” sorria, admirando os beija-flores se alimentando nos bebedouros dependurados pelo jardim. Minha mãe sempre a tratou com carinho, nunca lhe fazendo perguntas sobre quaisquer coisas, e hoje eu me recordo do olhar que trocavam naquele silêncio quebrado somente pelas risadas e pelo bater de asas de algum pássaro mais afoito. Havia entre elas uma cumplicidade entendida apenas no olhar. Nunca ficamos sabendo a sua historia completa. Ela era somente a Dona Maria e seu filho anjo, e durante muito tempo foi assim, até que um dia ela falhou na visita. Não veio na semana seguinte, nem na outra.  E minha mãe procurou saber e tivemos uma dessas noticias tristes que chegam e entristessem no coração ficando para sempre como uma tatuagem de tristeza e saudade.  Houve um incêndio na casinha onde ela morava com o filho. Foi durante a noite e ninguém soube o que aconteceu. Acreditam que possa ter sido uma lamparina que começou o fogo já que não tinha luz elétrica na pequena casa. Não houve tempo para salvá-los. Tudo virou um amontoado de cinzas sopradas pelo vento, e às vezes quando estou quieta em casa, minhas lembranças se soltam e eu vejo os olhos azuis mais límpidos que já existiram e o rosto de uma mulher de muita fibra e da qual nunca me esqueçi.


                      ...para D. Maria e seu filho "diferente", onde quer que estejam.


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Luciah Lopez
Enviado por Luciah Lopez em 01/05/2008
Reeditado em 20/10/2021
Código do texto: T970439
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