Anjo da guarda (de plantão, em um feriado).

Era noite na cidade. Dentro do Honda Civic preto o som estava alto, tão alto que poderia se duvidar se os passageiros poderiam ouvir seus próprios pensamentos. Mas não haviam passageiros. Gabriel estava sozinho.

Sozinho, acompanhado somente por meia garrafa de whiskey (gostava de falar assim e irritava-se com os que chamavam a bebida de whisky, embora soubesse que os dois são corretos) bourbon americano Jack Daniel’s (não era de fato um bourbon, ele dizia para quem quisesse ouvir, mas sim um whiskey feito através de um processo chamado amadurecimento por carvão, que consiste em se gotejar lentamente o liquido através de containers contendo 3 metros de carvão durante dez dias). Dava grandes goles na garrafa enquanto pensava que valiam a pena os 10 dias de espera diante do resultado final e gargalhava sozinho, consigo mesmo, à moda que os bêbados fazem.

Dirigia o carro em alta velocidade, não havia trânsito, era feriado prolongado na cidade, aqueles dias em que todo pai e mãe se vêem quase que obrigados a levar seus rebentos para molhar os pés na água do mar e a fazer castelinhos na areia, ou a aprender a tirar leite das vaquinhas. Não deixa de ser, ainda, um ótimo pretexto para os próprios adultos fugirem temporariamente do caos da realidade cotidiana, da esmagadora opressão inerente à vida na selva de pedra. Além disso, a noite já ia avançada. Ele podia acelerar. A cidade era só sua.

Olhava fixamente para frente, hipnotizado pela projeção dos faróis do carro no asfalto que corria rápido sob o automóvel e com o “rabo do olho”, a chamada visão periférica, captava os traços de luzes de outdoors, painéis de neon, semáforos e alguns poucos outros faróis de carros parados em outras ruas que terminavam na que ele transitava, que passavam rapidamente, deixando apenas traços luminosos, verdes, vermelhos e dourados. Suas percepções já não eram mais as mesmas (ele estava bêbado) e, vez por outra, virava-se para ver algo que despertara sua atenção, porém já havia passado.

Resolveu trocar a música que acabara de começar em seu cd player. Não gostava dessa banda, o que essa merda de música estava fazendo ali, na coletânea que ele mesmo fez?-pensou. Ela gostava dessa banda- Lembrou-se- Sim, só se foi ela.

Foi ela!- balbuciou, débilmente.

Sua cabeça girou levemente e seus olhos vagaram, por milisegundos. Passaram por sua mente imagens distantes, fragmentos, pedaços de cenas passadas há muito tempo e sensações que ele erroneamente chegou julgar já ter esquecido, embora ele pensasse nisso constantemente. Lágrimas brotaram nos olhos desfocados.

Irritado (ele estava bêbado), pôs-se a procurar outro cd na porta lateral do carro. Olhava para o lado e para baixo tentando pegar o cd que escorregara de sua mão quando ouviu uma buzina muito forte, que o fez levantar-se, bruscamente.

Viu o traço da luz vermelha que passou rapidamente sobre sua cabeça, compreendeu imediatamente que passara em um sinal fechado e viu ainda horrorizado, logo a frente, um carro que com o farol verde para si havia avançado e, agora no meio do cruzamento, desesperado, buzinava freneticamente percebendo que ele não iria frear.

O que se passou a seguir foi muito rápido. Instintivamente, e só mesmo por instinto, afundou os pés no pedal de frenagem do carro. Um barulho terrível seguiu-se ao ato, os pneus queimaram o asfalto e o bólido começou a rodopiar na pista, uma, duas, três, oito vezes no total. Foi por milímetros.

Tudo o que viu foram luzes girando loucamente, sentiu a ação de uma força avassaladora que o arremessava para todos os lados, quase o jogou pela janela e o barulho, um barulho ensurdecedor, uma mistura de borracha sendo triturada, dos seus próprios gritos e de metais guinchando, como quando retorcidos. Foi por milímetros.

Passou muito perto do outro carro... Não encostou nele.

Por milagre... e por milímetros.

Foram segundos, apenas segundos, que pareciam nunca acabar...Mas acabaram...

Silêncio.

Enfim o mundo voltara ao normal. O carro parou, enviesado, no meio da pista, voltado para a contra mão. A garrafa que estava apoiada no meio de suas coxas voou, derramando seu liquido por todo o interior do veículo e também por sobre seu corpo. Gabriel estava pasmo, anestesiado. Levara uma violenta descarga de adrenalina, tão violenta que quase o deixara sóbrio, seu coração estava disparado e suas mãos trêmulas, mas ainda não tinha forças para se mover, estava ali, parado, como em um sonho.

Viu então o carro do cruzamento passando lentamente na sua frente, rostos assustados nas janelas, duas mãos pequenas, amarelas, espalmadas contra o vidro no banco de trás, todos olhando para ele. O carro não parou nem ninguém disse nada, simplesmente passou e seguiu em frente. Olharam-no, com aquele olhar de quem assiste a um semelhante em estado de miséria, perdido, em meio à solidão e tristeza do mundo. Ele viu o medo estampado naqueles rostos, sentiu o medo daquelas pessoas tão nitidamente quanto o jato frio de pena que seus olhares despejavam sobre ele. Seguiram seus caminhos enfim, foram embora, e deixaram-no ali.

Começou a se recompor.

Deu partida no motor e estacionou o automóvel no meio-fio.

Desceu, as pernas ainda um pouco bambas.

Circundou o carro e, sentando-se na calçada, sob à luz dos prédios altos da cidade e sentindo pena de si mesmo, precipitou a chorar.

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