DOIS TIMES

DOIS TIMES

Como sempre, o implacável sol de Teresina dava os primeiros sinais de que o dia seria um daqueles estafantes dias de verão. Os pardais gorjeavam indiferentes aos dramas sociais que envolviam os humanos. O sol ocupava seus espaços no céu de brigadeiro, prenunciando um dia quente.

Num dos bairros periféricos da cidade, um homem, um José, casado, pai de três filhos, expunha o peito descarnado ao sol que despontava no horizonte. Com poucas chances de viver boas emoções naquele dia, limitava-se a sonhar com a possibilidade de novamente ter em sua casa, o fornecimento regular de água pela concessionária.

José sustentava a família graças à venda de picolés. Percorria as ruas da cidade empurrando um carrinho, cuja presença era denunciada por uma sineta. No dia anterior, conseguiu ganhar R$ 30,00 que garantiram o pagamento das duas contas em atraso. Faltava-lhe ganhar, a taxa de re-ligação.

Com fervorosa crença em Jesus, olhou para os filhos e a mulher que ainda dormiam. O farnel, pelo menos para aquele dia, estava abastecido. Tinha arroz, feijão, farinha, a banda de um frango e sal. Pediu a proteção do Divino e partiu em busca do ganho necessário para o pagamento da taxa. Tomou o ônibus e se destinou ao bairro Primavera, onde estava instalada a fábrica de picolé DELÍCIA.

Com 200 picolés acomodados no pequeno espaço interno do carrinho, José partiu para os “pontos” onde se concentrava grande número de consumidores do produto que vendia.

Tirou o chapéu, olhou para os céus e foi à luta.

Do outro lado da cidade, noutro extremo periférico, uma esquelética mãe, Josefina, contorcia-se em dores abdominais. Sabia do seu mal – era uma infecção intestinal que a desidratava. Morava em uma casa de taipa coberta de palha. Fora abandonada pelo marido e vivia de lavar roupas. Vivia na companhia de seu único filho, Etevaldo, que ainda imberbe, sonhava com um mundo melhor do que aquele em que vivia com sua pobre mãe. Tinha boa índole, mas sentia-se impelido à desobediência, face ao desencantamento que as miseráveis condições lhe impunham.

Quase que na mesma hora de José, Etevaldo acordou ouvindo os gemidos da mãe. Olhou seus olhos tristes, marcados por profundas olheiras. Parado em frente à rede que acomodava sua melhor referência, ficou atônito quando dela ouviu:

- Acho que vou morrer. Estou defecando sangue. Veja se consegue este remédio que o médico me receitou. Não temos um centavo para comprá-lo, mas pelo amor de Deus, não me deixe morrer.

Impotente e com lágrimas nos olhos Etevaldo, pensou e disse pra mãe:

- A senhora não vai morrer. De qualquer jeito, hoje eu trago seu remédio.

Foi até a casa da vizinha, não menos miserável e pediu que ela olhasse sua mãe; que lhe fizesse um chá ou qualquer outra coisa que a fizesse suportar as dores, até que ele voltasse.

Voltou a casa, pegou o receituário médico e uma faca. Vestiu a camisa do flamengo e numa sacola plástica colocou uma outra do palmeiras. Os times de sua preferência.

Disse à mãe que estava indo, em busca de socorro e que logo voltaria.

Sem um centavo no bolso, pediu um vale-transporte a uma estudante que estava na parada de ônibus. Felizmente ela o atendeu. Em 15 minutos estava em frente à casa do Dr. Otávio. Acionou a campainha. Um homem forte apareceu. Era o vigia. Etevaldo se identificou como sendo filho da lavadeira Josefina e pediu para falar com o Dr. Otávio.

- O doutor não está. Não tem ninguém em casa. Estão todos viajando.

- Obrigado.

Etrevaldo procurou na memória alguma outra pessoa que lhe pudesse socorrer. Não lembrou de mais ninguém. Entrou em uma farmácia, tirou do bolso a receita e entregou ao balconista perguntando o preço daquele remédio.

- R$ 46,50 já com o desconto.

Disse obrigado e saiu. Ficou em frente à farmácia. Abordou duas pessoas, pedindo ajuda, mas sem sucesso. Abordou outras tantas, mas todas lhe negaram apoio.

Era quase meio-dia e próximo dali, José estacionou seu carrinho debaixo de uma árvore. Pôs-se a contar os picolés e o apurado. Etevaldo se aproximou trêmulo, pediu um picolé – tinha a intenção de não pagá-lo. Sentou-se no meio-fio ao lado de José, iniciando uma conversa amistosa.

Não acostumado com maldades, Etevaldo travou uma batalha interior antes de se arriscar na tenebrosa aventura. A necessidade empurrava-lhe para um abismo, para um caminho sem volta, para o mundo do crime. Por um instante olhou para a figura raquítica de José. Dele apiedou-se, mas não ao ponto de desistir de seu intento. Abriu a sacola simulando procurar o dinheiro para pagar o picolé e dela sacou a faca. Rápido, encostou a ponta da faca na garganta de José que, surpreso, empalideceu.

- Passa o dinheiro, rápido!

Diante da ameaça e sem esboçar nenhuma reação, José obedeceu, entregando-lhe todo o apurado do dia, quase R$ 80,00.

Como uma flecha, Etevaldo desapareceu por entre as ruas desertas, sem que fosse interceptado até chegar à próxima farmácia para, enfim, comprar o remédio para sua mãe. A lembrança da expressão nervosa do picolezeiro e a certeza de que agora era um criminoso, constrangia-lhe de tal modo que sentia vontade de vomitar. Estava arrasado, pensava em restituir o dinheiro roubado e pedir desculpas ao coitado. Justificava-se em função da causa que julgava ser nobre – queria salvar a mãe, mas perguntava-se por que fora atacar um homem tão miserável quanto aquele?

Ao se aproximar do caixa para efetivar o pagamento, Etevaldo observou que um cidadão, aparentando mais de 60 anos, dedilhava códigos no caixa eletrônico. Segundos depois, a máquina vomitou quatro cédulas de R$ 50,00. Etevaldo saiu da farmácia e como uma fera na espreita da caça, fingia esperar o ônibus. Assumira consigo mesmo, o compromisso de devolver o dinheiro do picolezeiro e pensou: bandido por um crime é a mesma coisa de bandido por dois. Sem pestanejar, planejou o segundo assalto.

O sexagenário saiu da farmácia e entrou no carro. Antes que desse partida, a lâmina fria da faca de Etevaldo, pressionava-lhe o pescoço sob a voz de comando do meliante:

- Isto é um assalto. Passa rápido os duzentos mangos. Rápido! Rápido!

Atônito, o pacato cidadão enfiou a mão no bolso, pegou o dinheiro que acabara de sacar e entregou ao rapaz vestido com a camiseta do Flamengo.

Com o produto do novo assalto em suas mãos, Etevaldo tomou a via contrária à posição que estava o carro do assaltado. Rapidamente, trocou a camisa vestindo a camiseta do Palmeiras, desfazendo a única referência que deixara ao fazer o assalto.

Refeito do trauma emocional, o cidadão assaltado telefonou para a polícia.

- Acabo de ser assaltado. Identificou-se como sendo um médico e forneceu as informações solicitadas pelo policial plantonista.

- O senhor tem alguma referência que possa nos ajudar a encontrar o bandido?

- Tenho sim. Ele vestia uma camiseta do Flamengo.

- Em alguns minutos uma viatura policial estará chegando aí. Por favor, o senhor aguarde.

Distante do local do segundo assalto e próximo ao do primeiro, Etevaldo encontrou desolado, o picolezeiro, que não o reconheceu de imediato, mas ouviu bem as palavras de seu algoz.

- Toma esse dinheiro e desculpa-me. Eu nunca mais vou fazer o que fiz. Disse isso e foi embora.

José contou o dinheiro, duzentos reais. Para ele, era uma dádiva do céu. Sem saber a origem do dinheiro, agradeceu a Deus e perdoou o assaltante.

Calmo e parcialmente redimido, Etevaldo chegou em casa, onde sua mãe não mais estava. Os vizinhos chamaram o socorro médico que a levou para o hospital.

Vítima de um mal mais sério do que infecção intestinal, Josefina faleceu.

Etevaldo vendeu a casa da mãe. Mudou de cidade e de times. Hoje torce pelo Vasco e pelo Corinthians. Ninguém faz somente o que gosta.

Rui Azevedo - 18.04.2008

Rui Azevedo
Enviado por Rui Azevedo em 18/04/2008
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