JOANA

Estar acordada ou não, ainda era um fato incógnito, sabia que respirava, sabia disso mesmo dormindo. Apesar de não saber muitas coisas, disso ela tinha certeza, o ar era o mais intimo de todos os habitantes dessa Terra, o único que a penetrava e estava presente por todo momento.

Poderia ficar assim até anoitecer, ou até cair o sono novamente, já que ali o sol não entrava, a noite era perpetua, mesmo estando as duas janelas sempre abertas. Na verdade, nada além dela mesma e as suas quinquilharias, que ela conseguia das ruas, entravam ali, era sempre uma escuridão sólida.

O quarto cozinha, que também era banheiro, foi um presente. Pelo menos era assim que ela considerava as coisas que ela ia encontrando pela vida e tomando posse, sentia-se muito segura em estar em um lugar tão firme, porque seu barraco era firme, a não ser por umas telhas que às vezes voavam com as chuvas e as trincas nas paredes, estava tudo do jeitinho que ela encontrou, e de pé, como um cavalo velho que ainda trota num descampado sem destino e sem futuro. Seu antigo dono devia ser muito caprichoso é o que ela pensava.

As paredes eram azuis, às vezes vermelhas, às vezes azuis de novo, na verdade nunca soube que cor eram, era tão escuro o ambiente que as cores ali não ficavam, então para não se entregar na palidez de seu habitat ela imaginava as cores de suas paredes e a sua própria cor, achava até uma alegria nisso, sentia-se como uma madame, podia combinar as paredes com os sapatos ou os seus brincos, que nunca conseguia colocá-los o par certo, nunca se soube se era por causa da escuridão ou se achava bonito assim. O fato é que em um cômodo onde se abrisse os braços poderia tocar as paredes, de tão pouca largura que ali havia, o mundo se mostrava pela janela de uma forma muito mais compreensiva.

Espaço era algo que ela muito tempo não tinha, ela tinha tanto apego as suas coisas, mesmo tendo as canelas, que eram finas como um galho de eucalipto desnutrido, roxas de tanto tropeçar. Sua casa parecia um deposito que ela se depositava todas as noites, como um túmulo de um vampiro.

Entre levantar ou continuar deitada, optou por levantar, não que isso faça alguma diferença para o mundo, 53 anos ela vem se levantando e o mundo ainda não a percebera, porém ficar deitada depois de acordada fazia com que ela doesse, muitas coisas faziam sentir dor, e para muitas coisas ela sabia o remédio, o remédio para a dor de estar deitada era levantar-se, porém tinha dores maiores ainda, como a dor de viver, para essa dor também tinha um remédio, porém nunca o tomou, a prova disso é que ainda estava viva, não que ela encarasse isso como uma vitória, mas ela era tão covarde que achava que a morte poderia doer, até mais do que aquela vida, então se deixou viver, mesmo doendo.

Já que estava de pé, deveria escolher um belo vestido para poder sair, não deveria demorar muito, já que só possuía dois vestidos. Resolveu usar o que não tinha usado ontem, mas qual foi o de ontem? Ontem, hoje, duas semanas atrás, mês que vem, ela sempre faz as mesmas coisas, tão igualmente que ela mesma não sabia se o tempo corria para frente ou estava voltando, na duvida pegou qualquer um, afinal os dois tinham a mesma estampa, florido como um campo em plena primavera, presente de um carnaval de anos atrás, o que diferenciava era que um tinha um botão para fechar no busto e o outro um elástico, mas ninguém notaria, só ela mesma.

Atravessar a porta é como um ritual, uma entrega de corpo e alma a uma nova vida que, acaba por ser idêntica a ultima. O que se pode esperar da existência de alguém que realmente nunca existiu?

O sol daquela manhã a ardia como se fosse um bom pedaço de carne de churrasco, ela caminhava como um cão que visto de longe parece saber aonde vai, mas no interior não sabe ao menos onde está, é uma perdida, nunca se encontrou nem foi encontrada.

Ao passar pela praça viu o que antes sempre tinha visto, mas nunca tinha chamado a sua atenção, as madames passeavam com os seus cãozinhos, entre todos, justo o que parecia um rato obeso lhe chamou a atenção, nunca tinha prestado atenção que os cães poderiam ser tão tenros, uma paixão imensa começou a brotar no seu coração, mas não uma paixão que se sente por um bicho de pelúcia, era uma paixão como por um pedaço de torta, uma coxa de frango, como deve ser o gosto de uma criatura dessa? Pensava ela. Devia ser quente como um bolo, comido as pressas, devia ter o vigor de uma rapadura. Seu pensamento voava, nunca tinha se sentido tão apaixonada por nada nessa vida, nem por ela mesma.

O cão que se parecia muito com ela no modo de agir, pois não se dava conta da existência, também se mostrou afetivo aquele olhar apaixonado, era como se concordasse com um futuro que pudesse unir os dois. Ela foi se aproximando do cão e ele dela, como estar um segundo atrás do ponto de fervura de um leite, os dois se olharam, não se sabia ali quem tinha mais consciência de se, eram apenas dois animais irracionais, um com dona e o outro sem. Ela pegou o cão e sorriu, a madame, como é de praxe, estava de conversa com uma outra e nem percebeu esses movimentos. Ela, segurando o cão, sentia-se como se tivesse uma unha grande, maior que as outras, queria roê-la, o cão pressentindo o desejo começou a latir, um latido oco como um coco podre que cai do coqueiro.

Com medo de que a dona ouvisse e levasse aquele jubilo de suas mãos, ela tentou forçá-lo a parar apertando a boca, ele a mordeu, ela então passou a mão por sua garganta. O pequerrucho parecia com ela quando estava triste e não consegui chorar e ela agora chorou, mudamente, até que o cão relaxou, a coisa na sua mão parecia justamente isso, uma coisa, como um trapo de roupa. Ela colocou-o na bolsa e foi saindo, a madame nem notara, como o mundo nunca a notara, agora com aquela carne peluda ela foi andando, ela não sentiu o sangue da criatura, ele morreu seco, como um galho de arvore, ela só sentia o peso, não o da culpa, mas ao do corpo. Ela ficou um bom tempo sem pensar, só andando como um zumbi até as pernas doerem, até a alma pedir descanso.

Chegou a um ponto de ônibus, viu que tinha muitas pessoas, o que era incomum para aquele horário, mas ela não estranhou, só constatou, afinal não tinha muita noção de horário, somente do dia e da noite. Rapidamente passou um ônibus e levou todos, ela sentiu uma vontade muito grande de ir junto. Com certeza eles não estão indo para minha casa, pensou ela. Então foi se sentar, só que ainda sobrou um senhor, ela sentiu pena dele, sentiu por ele um abandono, lembrou do cãozinho sendo estrangulado, pensou no sufoco que ele passou e via agora aquele senhor como a mesma cara, queria ajudá-lo, mas como? A única coisa que sabia era respirar, mas o senhor parecia saber respirar melhor do que ela, ele parecia calmo, leve, como se pertencesse aquele lugar.

Agora não sabia o que fazer, sentar não podia, tinha alguém no banco, apesar de ter espaço suficiente para uma dúzia dela, mas ela nunca achou que espaços fossem para ela, mas as pernas doíam e sabia que o remédio para a dor de ficar de pé era sentar-se.

_Com licença!

Foi mais rápido do que ela, o senhor arredou e convidou-a a sentar-se, ela estranhou, olhou de lado, como um bezerro que procura a mãe, não viu ninguém, era com ela mesma, constatou, afinal tinha até esquecido que era visível, há tanto tempo sendo ignorada, sentiu-se ridícula, havia mais de meia hora que estava ali parada, na verdade poderia ser até 10 segundos, para ela a intensidade com que as coisas aconteciam é que davam a idéia de tempo, não os ponteiros do relógio, só essa manhã parecia ter vivido mais do que toda a sua vida.

Obrigada! Disse e sentou-se, tinha tanto tempo que não ouvia a sua voz que não sabia que estava tão madura, são tantos anos conversando consigo mesma através dos pensamentos, sem precisar usar sua voz, fazendo e respondendo suas próprias perguntas, que nem notara que se tornara uma senhora, por onde será que ficou aquela voz de moça? Pensava ela.

O Senhor começou a falar, como se latisse igual ao cão antes de morrer, falava, falava e ela não entendia, ela achou que ele também devia esta morrendo, dizia que o referendo do dia 23 seria muito importante para o país, ela não sabia de que ele falava, já tinha visto um referendo, pelo menos é o que ela achava, quando entrou numa igreja, e um senhor muito diferente desse, que usava um vestido muito mais bonito que o dela, passava a mão na cabeça das pessoas e elas o chamavam de referendo, ou algo assim. Ela sentiu a paz que as igrejas transmitiam a ela, passava a mão no corpo do cão, ele também parecia estar em paz, nem parecia àquela criatura irritante que latia no parque.

O Senhor começou falar de mortes, ela ficou assustada, começou a desconfiar que ele soubesse de tudo, ele falava de armas e responsabilidade, ela não sabia o que eram, ele falava de sangue, mas o cão não sangrou, ela queria ir embora, ela queria ir para sua casa e deitar na sua cama, aquele senhor parecia uma goteira, latejando em sua cabeça, por nada ele se calava, ela começava se sentir sufocada como se o cão estivesse apertando sua garganta, ela se levantou, o senhor nem notou e ela se foi.

Não reparou que tinha deixado o cão no banco, nem o senhor notara a presença morta da criatura, ela também já até esquecera do que tinha acontecido, do cão na bolsa, com certeza mais tarde sentiria falta da bolsa, pois era a única que ela achava que combinava com o vestido. Foi-se como um rio, guiada pela força da terra que a faz seguir. Atônita como um pé de couve, ela seguiu até a sua casa, como quem rezando um terço se perde e recomeça sem mesmo notar, amanhã faria tudo novamente, com algumas alterações, mas nada que não possa ser esquecido. A memória curta de uma longa vida é o melhor remédio para se ter um bom descanso.

Cobalto
Enviado por Cobalto em 05/01/2006
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