PALAVRA FINAL

O ponteiro do relógio parecia engrenar vagarosamente ao buscar o encontro na parte mais elevada da marcação. Doze horas. Papéis eram cuidadosamente colocados em três montes daquela extensa mesa de decisões. A moça da digitação, ou melhor, a escrevente, fazia os últimos acertos: procurava os ofícios adequados, dava alguns telefonemas e, de quando em quando, falava baixinho ao ouvido da Juíza de plantão.

A ordem foi dada. Entraram um senhor e uma senhora de mãos dadas – deveriam estar na casa dos cinqüenta e poucos anos e eram os pais – o advogado carregava uma maleta escura, feita em couro trabalhado nas laterais e, por fim, entrava o menor infrator, que estava sendo alvo dos noticiários dos últimos dias.

- Excelência, indagou o causídico, muitos processos? Esta Vara (de menores) está cada dia mais movimentada e vai precisar de um mutirão daqui a um tempo pra colocar a casa em ordem.

A Juíza apenas acenou levemente concordando com o comentário do advogado e deu algumas orientações aos presentes na sala de audiência. Como de costume, eu me posicionei atrás do representado (menor), que estava algemado e aparentava estar muito impaciente, desenhando figuras imaginárias com as pontas dos dedos sobre a mesa. O outro colega ficava na outra extremidade da mesa, responsabilizando-se por acompanhar solidariamente o que se passava no recinto e tratando de manter a ordem.

A audiência transcorreu muito pacificamente, com as partes aceitando as determinações da medida a ser cumprida pelo adolescente: ficar semi-acautelado, estudando e trabalhando durante o dia e retornando à unidade para dormir à noite. Como a defesa havia explicado que o rapaz era dependente de cocaína e álcool, também foi feita uma guia para o serviço de desintoxicação.

Sabe quando as coisas vão se desenrolando em um clima muito “asséptico”, quadrado demais, como se a última peça ainda não tivesse sido jogada? Era mais ou menos isso que um olhar entre mim e o colega que cuidava da retaguarda revelava.

Um pigarro mais forte do promotor interrompeu as minhas divagações mas, era só uma dessas conseqüências do vício da nicotina nos tempos modernos. Não indicava nenhum ato de reprovação contra qualquer coisa naquela sala.

Agora, só faltava o menor assinar o documento de audiência, o termo de assentada, e dar início ao cumprimento da medida judicial. Era um tempo longo demais naquele momento...

De súbito, o sócio-educando levantou-se e virou a mesa, batendo com as algemas contra os pequenos objetos que iam se despedaçando ao longo do chão. Todos os documentos que estavam ao seu alcance foram esmigalhados, despedaçados, viraram pó.

O processo judicial, que era um calhamaço de papéis ajuntados, foi cortado com a força dos punhos do adolescente como se fosse um pão dormido que não pode oferecer nenhuma resistência.

Observem que isto tudo ocorreu num intervalo tão ínfimo de tempo quanto talvez leve um ajeitar de um nó de gravata ou, quem sabe, a colocação de um marcador de livro em uma página qualquer.

O certo é que seguramos com energia ambos os braços daquele indivíduo que impunha respeito pela sua estatura, em torno de 1,80m e formação muscular semelhante a de um lutador de boxe. Aliás, se lhe tivesse sido dada alguma oportunidade no campo esportivo, tenho certeza de que ele seria um atleta dos mais destacados.

Voltando à cena, creio que, pela contenda deflagrada, se ele quisesse mesmo se opor a nós, pouco poderíamos fazer, face à desproporção entre o seu aspecto gladiador e a nossa fisionomia de vendedores de livros (a quem eu considero muito) e ao nosso poderio bélico (uma caneta azul com a carga pela metade).

Por sorte, o arroubo do adolescente foi apenas um “desengasgo”, uma espécie de demonstração de quem está querendo mostrar ao “sistema” que ainda pode dar trabalho.

Feito isto, pudemos conduzi-lo calmamente ao setor de acolhimento, inclusive com os seus pedidos de desculpas e choro, muito choro dos pais, numa sala que parecia ter sido arrastada por um ciclone.

Voltávamos, em cinco minutos, a outra audiência. Desta vez, era um garota que já estava acautelada há 30 dias e ... Ah, isso é outra estória.

YOUNG
Enviado por YOUNG em 12/04/2008
Reeditado em 12/04/2008
Código do texto: T942873