O azar é de quem tem

Definitivamente, Sumaré é uma cidade europeia.

Haja vista 12 horas para chegar partindo da capital de São Paulo.

Haja vista 115 quilômetros de São Paulo e ainda assim perfazer 12 horas para chegar.

Não é conto de pescador e sim puro azar!

O sol que fazia num sábado era cenário perfeito para uma também perfeita viagem. Havia dormido pouco e me preparava para partir.

Diário de bordo – 12 de maio de 2007 – Rodovia dos Bandeirantes

10h30 – Coloco a mochila no carro, era dia de ver Tereza e Célia, amigas de longa data alocadas nos confins interioranos de São Paulo, precisamente, em Sumaré. Célia era de Campinas, mas também fora até a casa de Tereza com o propósito de visitá-la e de nos reunirmos.

Passei pelo posto de gasolina a fim de fazer a última inspeção antes de pôr os pés na estrada. Dinheiro para o pedágio, tanque cheio, pneus calibrados, água e óleo no nível – sinal da cruz. Ainda para sair da cidade, um trânsito custoso fervia-me os nervos, mas enfim, a estrada.

A trilha sonora da viagem ficou a cargo do motor, que um tanto ruidoso sugeria um rock progressivo setentista, aliás, forçosa sugestão essa, uma vez que o rádio havia sido subtraído do veículo meses atrás. A música, enfim, era aquela

A subtração é uma operação matemática muito praticada nas grandes metrópoles e é sem dúvida, irremediável... Tudo seguia pela normalidade, a paisagem tinha pressa em se mover e não permanecia a mesma por muito tempo. Roda, roda e roda. Passado o primeiro pedágio, tinha no saldo R$5,10 a menos.

Pensava que a taxa não era tão alta considerando que as condições do asfalto estavam ótimas e havia telefones de emergência espalhados por toda a via. Roda, roda e roda. De repente, o baterista da banda de rock progressivo sinalizou. Sim, a luz da bateria do carro acendeu estranhamente como nunca houvera acontecido antes, mas a música continuava.

Próximo ao segundo pedágio, um estouro! Confesso, não esperava por efeitos especiais naquele momento, mas a música continuava. Eis que chega o famigerado. A subtração do saldo foi de R$5,00 (pedágios...). Roda e roda. A música sofrera brusca queda de andamento. Compassos seis por oito, quatro por quatro, três por quatro, dois por quatro. Parou! Vi-me posto ao acostamento da estrada.

12h00 – Contrariado, sai do carro para saber porque a banda parou. Na verdade, tratava-se de um "grand finale" e quando verifiquei o capô, vi toda aquela fumaça branca subindo e um líquido alaranjado que respingava a pintura lateral dianteira.

Francamente, era uma surpresa e tanto. Não contava com essa acidez de humor da banda. A mangueira de água do radiador tinha estourado. Um longo suspiro. Um olhar ao céu e outro ao chão. Todos os carros zuniam a pressa de atingir seus destinos e eu ali, em maus lençóis, vivenciando o drama do carro quebrado pela primeira vez. Estava sem celular.

Sim, há três semanas atrás, o namorado foi tomado de um surto sem precedentes e espatifou o pobre coitado contra o chão em sua última crise de ciúmes, eu disse: última! Eis que me vejo a caminho do tão desprezado telefone de emergência da estrada. Observava o aparelho amarelo que ensinava o usuário a apertar um único botão e aguardar.

A princípio achei muito fácil, mas uma gravação insistente dizia que todas as posições de atendimento estavam ocupadas. Meu dedo, mais insistente que a gravação, apertava o botão desesperadamente. Foi então que uma microfonia horrível vinda do aparelho se anunciou. Ouvi a atendente que tentava o contato.

Como o chiado e os apitos eram muito intensos, eu só gritava que estava com o carro quebrado no quilômetro 84,7 e não podia seguir viagem. Ela falava, eu não entendia e o contato findou-se. Como não tinha certeza se minha solicitação havia sido registrada, continuava a massacrar o botão do aparelho. Outra microfonia, eu repetia o problema sem nada entender o que a atendente dizia, novo fim de contato.

Aperta e aperta o botão. Outra microfonia. Um urro sonoro da atendente dizia para eu me acalmar, o guincho já estava se dirigindo para o local. Sobreveio a sensação do amparo. Foram gastos no procedimento 15 minutos, entrei no carro e esperei de olhos grudados no retrovisor.

12h35 – Não demorou muito, veio o guincho acudir. Ao modo do naufrago que vê a barca salvadora, fitava o motorista a descer do caminhão. Ele, de semblante pouco amistoso, monossilabicamente perguntou sobre o ocorrido.

Eu, em detalhes, comuniquei o fato. Abriu o capô do carro e viu a mangueira partida, abaixou-se, constatou um pequeno vazamento de óleo e removeu restos do que classificou como correia do alternador. Certos termos automotivos me soam como linguagem grega, portanto limitei-me apenas a fingir entendimento. Entrou no caminhão, comunicou à central e depois, começou o processo de reboque. Disse que poderia me deixar apenas no posto de gasolina mais próximo dali. Estávamos na altura de Campinas e assim foi feito.

13h10 – Chegando ao posto, meus pensamentos fervilhavam maneiras de obter conserto para o meu veículo. O guincheiro da estrada me orientou para que pedisse ajuda aos frentistas que tinham conhecimento sobre os mecânicos da região, quando fomos interpelados por um homem loiro de estatura mediana que parecia apiedar-se da situação.

Sorriso no rosto e sempre gentil, especulou sobre o fato e mostrou logo a alguns metros dali seu caminhão de guincho particular. Compreendi instantaneamente o motivo de seu entusiasmo. Assim que o guincho da estrada colocou meu pangaré no chão, Vandeco profetizou meus gastos caso quisesse utilizar-me de seus serviços.

Se fosse para Sumaré, aproximadamente 40 quilômetros dali, desembolsaria R$ 150 reais ou, se trouxesse para São Paulo, R$ 340 reais. Era injusto estar tão perto de meu destino e ter que voltar ao ponto de partida...

Como resolvi não contar com a sorte, decidi que iríamos para São Paulo influenciado por um mancebo local que também acompanhava a transação. Disse ele que os mecânicos de Sumaré até poderiam arrumar meu carro para a viagem de retorno no dia seguinte, mas notariam minha pressa e me cobrariam o preço da hora da morte. Achei de muita sabedoria seu conselho, uma vez que poderia consertar o carro quando quisesse e não imediatamente.

Entorpecido com a confusão, deixei a cargo de Vandeco hospedar meu carro em seu guincho enquanto fui até o telefone público mais próximo. Vasculhando a carteira, constatei que meu cartão telefônico não tinha créditos e apelei para as ingratas chamadas a cobrar, primeiro para minha casa.

Primeira tentativa... noventa, noventa, código da operadora, mais código de área sem o zero e o raio do número de telefone. Sem sucesso. Segunda... noventa, código da operadora, mais código de área sem o zero e o raio do número de telefone. Sem sucesso.

Tive vontade de esmurrar o telefone pela minha latente burrice. Uma espiadela em direção ao guincho e Vandeco já dirigia seu caminhão com o respectivo hóspede. Tive uma crise de desespero e sai correndo, nunca o tinha visto antes e ele já distava alguns metros de mim, gritei e acenei. Para meu alívio, ele apenas tinha ido manobrar a geringonça.

13h50 – Subi na cabine portando uma taquicardia que se desfez em alguns minutos. Não conseguira ligar nem para minha família, nem para Tereza para dizer sobre o contratempo. Mesmo supondo que ambas estivessem preocupadas, decidi ir direto para casa. O guincheiro de sotaque levemente interiorano parecia calmo e feliz.

Nem bem nos conhecemos, ele já introduzira assuntos de cunho pessoal, vida sentimental, coisas do gênero... fiquei então à vontade para contar de meus dilemas. Tinha terminado um relacionamento de dois anos há quase um mês e ainda estava em processo de recuperação. Dizia não querer saber de nada e que de agora em diante iria apenas curtir a vida sem dar muita importância aos assuntos sentimentais.

Coincidentemente, ele também contou história parecida e as gargalhadas foram inevitáveis. A empatia ficou clara até pelo malfadado destino. Entre o dedo de prosa, ele ofertou uma carona para voltar até Campinas – caso quisesse. De pronto aceitei, não poderia deixar o fim de semana ir por água abaixo por um infortúnio qualquer. Roda, roda e roda. Enfim, já avistávamos São Paulo e sua espessa nuvem de poluentes. Agora sim, o velho, denso e costumeiro ar!

15h10 – Já na rua de casa, os muitos carros estacionados dificultavam a manobra do guincho para deixar meu carro o mais próximo possível da garagem. Realmente, tivemos que deixar um pouco distante. Pulei da cabine afoito para comunicar o ocorrido aos meus familiares.

Quando adentrei à sala, minha vó de pé e com a mão no peito estava estática, com uma expressão que misturava alívio e aborrecimento, disse que Tereza já tinha ligado várias vezes para ter notícias minhas. Fiz um rápido resumo do que acontecera, peguei o telefone e liguei para minha amiga.

Tereza atendeu e ao ouvir minha voz soltou um involuntário "graças a Deus". Disse tudo o que pude para primeiro tentar redimir meu desmazelo, depois para certificá-la de que não desistiria do propósito de ir até sua casa.

Feito isso, voltei à rua onde Vandeco e meu pai me esperavam, era preciso empurrar o adoentado de quatro rodas para seu leito de descanso até que um "doutor" lhe pudesse assistir. Assim que colocamos meu carro na garagem, tirei o peso de meio piano dos ombros. Meditativo, refletia sobre encargos futuros ao passo que me autoconsolava e tentava prover algum ânimo para a nova viagem de regresso.

Todo esse desgaste físico e emocional teria de ser compensado no mínimo por um prato de macarrão de minha vó, o almoço era o mote mais apropriado para o momento. Convidei Vandeco para almoçar, uma oferta modesta, mas de extrema valia.

Seria injusto que tanta simpatia dedicada a minha causa tivesse como paga algo menos que isso. Entramos e nos sentamos à sala, fui até a cozinha inspecionar as panelas e para minha surpresa, o almoço não estava pronto.

Às pressas, minha vó colocou o macarrão no fogo e tivemos que esperar. Finalmente, quando o nível dos abalos sísmicos vindos de nossos estômagos atingia o auge na escala Richter, o anuncio: – A "boia" está servida.

Bela macarronada com pedaços generosos de calabresa e molho bolonhesa, acompanhada por uma salada simples de alface e tomates. Sem cerimônia, o trabalho dos talheres não demorou a deixar os pratos sem nenhum vestígio de alimento. Refeitos da fome que nos consumia, era hora de pensar em colocar novamente os pés na estrada.

16h15 – Pronto para prosseguir, subi na cabine do guincho com esperanças de logo chegar à casa de Tereza, partimos. A conversa continuou agradável e quando passávamos pela ponte da Freguesia do Ó rumo à estrada, uma nova surpresa.

Um rapaz acenava com o mesmo ar desconsolado que me fora imposto há algumas horas atrás. Paramos. Ele precisava de reboque para um lugar próximo dali. O profeta dos desafortunados automobilísticos lançou mão de nova centúria anunciando o montante a ser desembolsado: tudo ficaria em R$50 reais.

O rapaz pechinchou, Vandeco não quis ceder, mas o convenci que essa quantia era realmente alta tendo em vista a pouca distância que percorreríamos. Meu argumento de nativo paulistano com pós-doutorado em Zona Norte o fez baixar o preço do serviço para R$40 reais. Feito! Nas proximidades do Largo do Limão, fomos orientados a entrar numa viela por demais estreita e sem saída, onde dormiam alguns moradores de rua.

Eu e Vandeco entreolhamo-nos e telepaticamente dissemos um ao outro: – Mas que raio de buraco é esse, estamos fritos! Estacionamos o guincho, eis o destino. Como sou alto e de porte físico avantajado, fiz uma cara pouco amigável e banquei de guarda-costas do guincheiro enquanto ele manuseava as alavancas do seu pronto-socorro motorizado.

O veículo foi devolvido ao chão daquele cenário nada hospitaleiro. O pagamento foi recebido e mais que depressa fomos embora. Sempre desejei o progresso das pessoas às quais nutro simpatia, mas sinceramente, não me era confortável a maré de sorte de meu novo amigo guincheiro... (que nenhum carro quebrado aparecesse em nosso caminho!).

17h00 – De volta à estrada, tinha em mente que chegaria ainda para jantar com minhas amigas. Era um fim de tarde de tempo aberto e temperatura amena. Uma revoada de pássaros entalhava o horizonte, quando ironicamente, resolve pousar sobre nossa sina uma ave de plumagem negra e gastronomicamente adepta dos mais diversos restos mortais, um urubu!

Um mau cheiro tomou conta da cabine e Vandeco perguntou se eu também sentia, disse que sim. Mais alguns quilômetros com o odor a permear nossas narinas e um susto, Vandeco constatara que o seu guincho estava quase fervendo e o tal cheiro horrível era de algo queimado. Tinha acabado de se lembrar que não tinha colocado água no radiador (palavrinha familiar e não grata para o dia). Fomos obrigados a ir para o acostamento.

17h40 – Com o dia dando adeus, vi-me novamente à beira da estrada. Enquanto o guincheiro examinava o problema, eu tentava crer que não fosse nada muito sério e o diagnóstico: estávamos impossibilitados de seguir viagem, era preciso que alguém nos socorresse. Vandeco, preocupado com os prejuízos, inspecionava o novo convalescente com cuidado e em estado de apreensão.

Tomei a iniciativa de ir até um telefone de emergência, dessa vez estava longe! No trecho de acostamento, seguia o caminho das saúvas que pareciam querer conduzir-me até o simpático aparelho. Pelejei um tanto para chegar e tinha novamente o prazer inenarrável de apertar aquele botão pela segunda vez no mesmo dia.

O atendimento foi muito mais eficiente, logo na primeira tentativa já obtive êxito. Comuniquei o fato atípico. Precisava de um guincho para rebocar um outro guincho – fim de contato. O caminho de volta até onde estava Vandeco já tinha bem menos luz, uma vez que a noite já se apressava a chegar.

As tão prestativas saúvas já não mais podiam ajudar, precisava de vagalumes! Deviam estar todos em Sumaré pois ali não havia nenhum. Depois da marcha atlética, disse a Vandeco que só nos restava esperar. Nos sentamos e encostamos em uma parede na grama de boa inclinação, quase como uma long chaise verde, rindo da situação e aguardando o rebocador.

Pairava um vento frio e o céu já mostrava dúzias de estrelas quando após 45 minutos veio o paliativo. Um caminhão especial feito para rebocar guinchos! Vandeco saudou o guincheiro da estrada com ar de familiaridade, trocaram impressões sobre outros companheiros do ramo cujo os quais desconhecia. Após os procedimentos necessários, enfim fomos rebocados.

19h00 – O guincheiro da estrada nos levou apenas até o posto de serviços mais próximo. Recém-chegados ao "Lago Azul", Vandeco esperava pelo pior, temia que o motor de seu possante tivesse sido afetado pelo super aquecimento provocado pela falta de água no radiador.

Com seu guincho desatrelado do rebocador foi depressa buscar um regador com água para constatar (ou não) sua suspeita. Um tanto ansioso, deu de beber ao sedento e iniciou os testes. Ligou o motor e observou por alguns minutos... Maravilha! Parecia estar tudo em ordem, poderíamos seguir viagem tranquilamente.

Em meus pensamentos, tinha a sensação de vitória diante de tantos percalços, era justo... O velho mote: "a justiça tarda mas não falha" era totalmente verossímil, aliás, mal sabia eu, quanto do teor de verdade ainda experimentaria. Subimos na cabine e ganhamos a estrada.

O cansaço já se pronunciava sobre mim, mas a esperança de que tudo aquilo terminasse logo era grande. Um celular reclamou atenção, era o de Vandeco. Pelo teor da conversa pude perceber que havia acontecido mais um fato desfavorável. Ao término, fui informado que ele recebera outro chamado de socorro de sua central, desta vez, um veículo que ia para São Paulo quebrou no quilômetro 71 e precisava ser levado de volta.

Um certo ar de desconcerto se compôs no semblante de Vandeco quando me disse que nós não mais iríamos até Campinas. Minha feição mudou bruscamente quando percebi que ele pegou um retorno para a pista que ia em direção à São Paulo.

O combinado era que ele me levasse até Campinas. Imediatamente protestei contra a falta de lealdade do até então amigo guincheiro. De modo a tentar conter meu surto de nervosismo, pegou o celular e ligou para um camarada pedindo um favor, o de que viesse de carro até o referido quilômetro me buscar, mais precisamente em outro posto de serviços de nome Serra Azul e levar me até Sumaré. Esse posto fica exatamente em frente a um famoso parque de diversões paulista, o Hopi Hari.

Ao assistir a cena do celular, pensei logo que se tratava de balela, que ele não havia falado com ninguém e estaria tentando me enrolar. Chegando ao tal posto, apressou-se Vandeco para ter com o infeliz dono do veículo, tratava-se de uma Kombi que estava cheia de homens nada bem apessoados.

Ainda na cabine, saquei do celular sem créditos que minha tia havia me emprestado para alguma eventualidade (e bota eventualidade nisso) e liguei a cobrar para minha casa. Eu estava profundamente desnorteado e narrei o episódio para minha vó que instantaneamente se angustiou. Não via meios para sair daquele lugar, uma vez que se os dizeres de Vandeco fossem mentira, eu ficaria ali isolado, sem a menor possibilidade de seguir viagem.

20h00 – O referido posto não era parada de ônibus e também não tinha movimento considerável. Fiquei ali, morrendo de medo e raiva do até então amigo guincheiro (se é que posso chamá-lo de amigo) abrigando a tal Kombi que seria levada para Cidade Tiradentes, bairro afastado do centro de São Paulo.

Mas alguns minutos e o tal veículo já estava instalado em seu guincho. Confesso que tive vontade de advertir os novos clientes de Vandeco contra um possível transtorno no caminho de volta, uma vez que seu guincho não parecia confiável o bastante para seguir viagem, mas ao examinar cuidadosamente aquele bando de homens de aspecto pouco amistoso, mudei de ideia.

Era hora de Vandeco partir rumo à São Paulo e eu, completamente descontrolado o questionei sobre a veracidade da ajuda que seu amigo me prestaria. No fundo, não acreditava que esse amigo existisse, foi quando ele novamente sacou do celular e fez novo contato.

Enquanto conversavam, ouvi Vandeco passar minhas descrições físicas: moreno alto, bonito, sensual e de camiseta vermelha (em suas próprias palavras), para descontrair um pouco. Ouvi também que o suposto amigo já estava próximo dali e em dez minutos estaria no posto. Vandeco terminou a ligação e garantiu que um Palio Weekend Prata e seu amigo de nome Galo fariam a gentileza de me levar dali até Sumaré (na porta do apartamento de Tereza).

Não tendo escolha, nos despedimos. Lancei o último aperto de mão de coração igualmente apertado. Observava o guincho que se afastava em direção à estrada com certo ceticismo.

O vento insistente fazia a noite parecer muito mais fria do que realmente era. No posto, poucos frentistas e clientes. Um silêncio predominava. Meus olhos buscaram o céu de estrelas numerosas e as orações foram intensas.

Se não fosse verdade o que Vandeco disse, estaria frito, teria de passar a noite ali já que não havia como sair e nem contar com a solidariedade de estranhos (quem daria carona a um moreno, alto, bonito, sensual e de camiseta vermelha?). Sim, tudo bem, mas supostos "estranhos" viriam em meu socorro e eu não poderia duvidar de sua providência.

Quinze minutos depois, sentado em uma mureta de cimento e desesperançado, ouvi o ronco do motor, um carro se aproximava. Examinei o modelo, era exatamente um Palio Weekend Prata! Um rapaz igualmente moreno chamou meu nome e eu, mas que depressa retribui o chamamento.

Era a minha salvação! Opa... examinando o interior do carro, constatei que ele estava densamente povoado (uma galera!). Abriram a porta de trás como sinal de boas-vindas. Um som em volume considerável, risadas e uma menina loira acenava para que eu entrasse. Entrei.

20h50 – O horário comercial do jantar já estava dando adeus. A fome era evidente e com toda aquela confusão, meu estômago beliscava os órgãos internos mais próximos. Não havia conseguido chegar a tempo como prometi e Tereza devia estar muito preocupada (e talvez com fome...), mas com a situação "encaminhada" era só uma questão de minutos. Aos poucos fui tentando me adequar aos meus novos amigos. Ao volante, Galo parecia alegre e acompanhado de sua namorada fazia várias piadas no intuito de que eu relaxasse.

Contei-lhes um pouco sobre minha tragicômica história e as gargalhadas foram ainda maiores. No banco de trás, ao meu lado, um jovem casal de namorados. O carro cheirava a perfume de menina e chiclete. Pude constatar que tive sorte, pois afinal, não estava no meio de um bando de desajustados.

Internamente, senti profunda vergonha por ter duvidado da palavra de Vandeco (pessoas boas e honestas ainda existem...). A conversa seguiu animada e ao passar pelo segundo pedágio, fiz jeito de pagar, pois era por minha culpa que eles todos tinham pegado a estrada, mas era tarde demais, Galo já havia pago a mal-humorada garota da cabine, seguimos.

21h30 – Enfim, cruzamos as portas de Sumaré que por durante todo o dia alvejei chegar, estava exausto. Mão no bolso para pegar o papel com o endereço... o papel, o papel... Reviro a mochila atrás do bendito papel e nada! Meu Deus! Eu estava na cidade onde Tereza morava depois de quase 12 horas forçadas de viagem e onde estaria o papel com o endereço? Todos no carro ficaram mudos, preocupados.

Respirei, pensei: ok, perdi o endereço, agora tenho que ligar para casa do celular (a cobrar), avisar que já estou na cidade e pedir para minha vó me passar o endereço que deixei anotado em nossa agenda. Liguei, felizmente havia mesmo feito a anotação. Comemorei pelo último susto vencido.

Paramos num posto de gasolina para pedir instruções sobre como chegar, não sabiam. Fomos a um segundo posto, não sabiam... Achamos estranho, o fato de ninguém conhecer o suposto endereço. Pedi para Galo parar o carro perto de um velhote local e perguntei, o velhote fez um sinal com o braço apontando para a rua de trás, examinou o papel com o endereço e apontou até o edifício (nunca subestime um velhote local!). Finalmente, estávamos na rua de destino.

22h00 – Aleluia! Após 12 horas, avistava Teresa sentada no banco dos jardins de seu edifício. Percebi que meus amigos ficaram realmente felizes e com a sensação de dever cumprido. Agradeci pela acolhida e socorro, pedi também para que agradecessem Vandeco em meu nome. Sai do carro e atravessei a rua.

Depois de um abraço de novela mexicana em Tereza, ela caçoava sobre meu infortúnio. Rimos muito, embora eu não acreditasse que finalmente havia chegado. Já no apartamento, Célia aliviara o semblante quando me viu, resumi a tal história e todos ficaram mais serenos. A mesa do jantar estava posta há décadas e com a comida fria, era preciso esquentar. Com toda aquela prosa deslizando pelos ares, Tereza ainda me reservava uma surpresa.

Tinha ela durante a semana conversado com uma amiga sobre minha solteirice e passado até meu telefone para ela. Sim, falamos por duas vezes durante a semana e ela me pareceu lúcida e sensata, o que já era bom começo.

Tereza tinha instruções de avisá-la assim que eu aportasse em seu apartamento, ela viria para o jantar e consequentemente, algo mais! Minhas pernas tremeram, ela era uma renomada e premiada cabeleireira de Campinas, segundo a somatória de todos os comentários, linda. Tudo bem, eu nunca me achei um Brad Pitt, mas também não era de todo um Gianechini...

Enquanto esperávamos, sentamos todos na cama do quarto de Tereza para ler algumas poesias na internet (a confraria dos escritores estava reunida), tive cólicas ao imaginar que ela poderia não gostar de mim, pois a maratona das 12 horas nem tinha sido contemplada com uma ducha, perfuminho.

Sendo assim, tratei de improvisar, fui até o banheiro para o providente "banho de gato". De posse do kit desfedorizador, arrisquei uma produção de minutos. Pronto! Um simples banheiro fora promovido a condição de sala dos milagres.

Não demorou, tilintou a campainha. Minha respiração ofegava, mas era preciso ter forças. Deixei Tereza recepcioná-la e fui logo depois, como quem estivesse fazendo alguma coisa (faz parte do charme). Quando a vi... procurei desfazer qualquer reação, não poderia demonstrar uma coisa ou outra pois não era elegante (dar uma de babão, queima).

Mas realmente, minhas retinas estavam mesmo queimadas após o impacto devastador. A moça era ajeitadinha, bonitinha, simpaticazinha... e de um metro e cinquenta e poucos! Para didática, possuo um metro e noventa. Enfim, tudo o que eu precisava para fechar o dia de inesperadas surpresas... (sem mais delongas... e surpresas também sim?).

O azar é de quem tem!

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Personagens

Eu => O viajante azarão

Teresa Cordioli (Recanto das Letras) => A anfitriã desolada

Célia Lima (Recanto das Letras) => A convidada da anfitriã desolada

e mais os coadjuvantes...

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 10/04/2008
Reeditado em 16/07/2021
Código do texto: T939112
Classificação de conteúdo: seguro
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