Em busca do elo perdido
Hoje amanheci sem vontade para ir trabalhar. Apanhei no velho guarda-roupa o meu surrado terno de tantos anos atrás, passado inúmeras vezes pela tinturaria... Quisera eu nesse exato momento poder jogá-lo fora. Ele e todas as lembranças que me obriga a recordar todo esse tempo, acordando no mesmo horário ouvindo a voz chata da minha mulher - Amor está na hora de ir trabalhar!
Ora! Quantas vezes, eu já parei para pensar no sacrifício que faço para manter uma aparência de homem disciplinado, trabalhador assíduo, criativo, que a sociedade me impôs como requisito para a minha entrada em um mundo consumista e capitalizado! Hoje, especialmente hoje, eu vou quebrar essa regra. Vou sair por aí sem medo ou culpas, caminhar pela praia, relaxar embaixo das palmeiras, ler um bom livro, ouvir uma boa música; fugir do tormento em que minha alma se encontra. Hoje vou viajar em busca do meu EU perdido. Vou fugir dos horários, das duas conduções para ir ao trabalho, do barulho do trânsito, da televisão, do computador, dos telefonemas. Vou sair por aí despreocupado, sem pensar nos conflitos mundiais, na violência e corrupção, na fome, miséria e poluição; no efeito estufa, camada de ozônio, no aquecimento global, no lixo, desmatamento, enfim... Com tudo o que vem preocupando a população planetária. Pelo menos, por uns dias, vou cuidar só de mim.
Vão falar mal desse meu comportamento, eu sei; vão dizer que sou vagabundo, irresponsável, insensível, egoísta, que não estou nem aí para a família. Ah, vão dizer tantas coisas... Minha mulher e minha sogra então! Essas nem se fala!Vão alardear pela vizinhança que deixei o trabalho para tomar cachaça, comer tripa de porco no bar da Graça, mulher falada por ser dona de hotel e barraca de praia. Mulher de muitos homens, na boca de Lana minha esposa. Vou sentir o cheiro do mato, queimar-me ao sol da manhã, relembrar o passado distante e sentir por um instante, o movimento dinâmico dos hippes, de um tempo louco, desvairado, com nuances do certo e do errado, mas quem pode julgar? A juventude de hoje, uma parte engomadinha, encarcerada em prédios de luxo ou favelas, mescla pobreza, fome, miséria, violência, overdose, rock pauleira... Quero relembrar o amor de Soninha, e tudo o mais que aquele momento histórico representou para a quebra de um paradigma.
O mundo mudou depois de nós, os vagabundos no tempo, liberdade ao vento, sonho de uma vida melhor.
Quero esquecer por momentos a tristeza, em ver o cárcere cheio, os palácios do poder carcomidos, o povo sem saber para onde seguir e o que fazer. Quero tomar banho de rio, de cachoeira no Capão, em Palmeiras, na Chapada Diamantina; gozar a paz de dormir ao relento, acordar ao som do canto dos pássaros e do barulho do vento sem medo de ser queimado e chicoteado pelos filhinhos de papai, que vez ou outra aprontam por aí.
Hoje eu vou demitir o medo, a mulher, o patrão. Sim, vou demitir o chefe da minha vida. Aquele muquirana que me torra a paciência e me paga uma mísera grana para cuidar do seu carro, seu jardim, suas compras, seus pagamentos, enfim... Para ser um "pau pra toda obra como se diz por aqui". Antes de partir para o Capão, vou caminhar pelas calçadas,ser um cancioneiro, menestrel, seresteiro; Vou cantar, correr, dormir sossegado, ouvir o canto dos grilos, o som das ondas do mar em Ondina, subir as montanhas, acordar preguisosamente, espreguiçar calmamente e sonhar com uma sociedade, mas igualitária, sem escravos engravatados, sem consumismo exagerado, sem compras para todo o lado e dívidas a pagar.Vou sumir na surdina.
Viajar pela Chapada, Andaraí, Mucuge, Lençóis, Morro do Chapéu, Jacobina... Deixarei um bilhete na porta da geladeira, dizendo assim: Minha mulher e minha sogra, não me esperem para o jantar, resolvi dar o fora vou cumprir minha sina, ser feliz; hospedar-me nas locas de pedras com desenhos rupestres, escrever e pensar que é possível sim, esquecer por uns dias, a agonia de ser um robô monitorado pela mídia, um instrumento de barganha, um ser disputado nas campanhas eleitorais e um esquecido logo depois. Pelo menos por uns dias... Vou quebrar esse paradigma!