Acordes Noturnos
Certa noite depois de uma crise de solidão, João da Cruz resolveu preencher sua vida de harmonia duradoura, queria reconfortar-se e escapar do desespero em que o dominava. Já havia juntado algum dinheiro de trabalho como funcionário público e resolvera comprar um violão. Ele imaginava um violão lustroso, desses que de tão novos parecem tão tentadores como o pecado e pedem carinhosamente para serem tocados. Nessa noite de tanto pensar no objeto do seu desejo ele quase não dormiu, juntou contra si seu travesseiro e sonhou tocando o mais belo acorde.
João da Cruz era solteiro, tinha trinta e dois anos, morava na rua nossa senhora das Dores, era vaidoso e perfumado e em algumas noites de sábado ia à Praça dos Mártires tomar sua vodca e prosear com alguns conhecidos. No íntimo, o que ele queria era encontrar a sua amada, platônica, mas tão real quanto a prostituta da esquina. João não desejava as prostitutas da esquina, queria antes ver o jogo de dominó do bar do Manoel. Coitado de João da Cruz esperava impacientemente o amor na forma de mulher, nada aparecia. Ele então cansou de esperar, resolveu apreciar a sua vodca em casa e ler alguns livros. Apesar dos conselhos dos parentes e conhecidos, principalmente da mãe, dificilmente ia passear na praça, ou olhar o jogo de dominó, ele preferia ficar só e contemplar seu desencanto.
Tudo leva aquela noite da decisão, pois ele resolvera dali seguir o seu desejo de juventude, aprender a tocar violão. Ele achava muito lindo o som do violão, das batidas apaixonadas dos instrumentistas do centro da cidade. Naquela manhã, com o dinheiro e decidido, resolveu enfim comprar um violão. Ele pensava que ia preencher a sua vida de sentido, com sorriso no rosto saiu da loja com seu violão e lembrou-se dos tempos e que seu pai levava-o para as serestas. Ele imaginou através das curvas sinuosas do seu violão a sua amada, esperando por ele através de cada nota. A partir desse dia não queria mais nada senão chegar em casa, debulhar seu violão com os olhos e com os dedos, sentir seu coração pulsando como a as cordas. Depois de três meses e algumas lições, João finalmente ensaiava seus primeiros acordes, queria tocar modinhas, sobretudos sambinhas e bossa-nova, estilos mais chorosos, ele queria sofrer com e apenas para seu violão.
Sua mãe já cansara de acordá-lo para ir pro trabalho, e na hora do jantar era a maior gritaria para fazê-lo largar o violão, sua mãe gritava:
— João larga logo esse troço e vem comer homem de deus! Só me faltava essa, depois de velho virar desocupado!
João por sua vez não ligava, aliás, nem ouvia, no seu quarto era só ele e companheira, não existiam dimensões, reinava absoluto. Lá pras onze da noite é que seu estômago pedia algo, ia então para a cozinha e encontrava o seu pratinho feito, comia apressadamente. Voltava para o quarto. Assim passaram-se dois anos, depois de várias reclamações dos vizinhos pelo barulho da madrugada. Alcançava assim o status de ótimo instrumentista, até que arrefece seu desespero e ele volta a freqüentar com a sua viola a Praça dos Mártires. Como novo boêmio, bebia, cantava e tocava aos risos e lágrimas, com seus amigos parodiava a desgraça alheia.
Nesse período é que conhece Mariana, morena robusta e afeiçoada, tinha uns vinte e cinco anos, e conhecera João tocando na praça, com paixão fulminante, João passa a viver intensamente para ela, casa, e esquece o violão. João da Cruz aos quarenta anos tem um infarto, debilitado e depressivo deita na cama e vê seu violão, seu coração chora ao dar-se conta do companheiro abandonado, sofre e tenta esboçar algumas palavras, inutilmente. Mariana ajeita seu travesseiro, mas João se esforça pra tocar seu violão mentalmente, quer tocá-lo com os dedos do sentimento, relembra das velhas noites, dos puros acordes e fica olhando fixamente para o violão. Pensa que este é o seu castigo, sua lição universal era tocar com o espírito, verdadeira forma de fazer o corpo ressoar das lamúrias através de um pedaço curvilíneo de madeira, que sem saber era a extensão da sua vontade mais pura.