Um encontro afortunado
Um encontro afortunado.
Eurico de Andrade Neves Borba
Ana Rech – RS, 2004
Nos encontramos, pela primeira vez, em Porto Alegre.
Foi num desses templos do consumismo, os chamados shoppings, cada vez mais gostosos de se freqüentar – são seguros, afastam a violência dos pobres e condicionam, em formas civilizadas de convivência, a violência arrogante dos ricos... São bonitos, com lojas bem arrumadas, cinemas, teatros, pequenos cafés, livrarias, encontra-se de tudo, inclusive mulheres bonitas.
O mês de novembro ainda não estava quente, a temperatura muito agradável num belo dia de sol. Participava de um seminário de professores universitários, daqueles repetitivos onde cada palestrante e seus comentadores repassavam o óbvio de forma pomposa.
Saí para almoçar com amigos e lá fomos para o Praia de Belas, o nome do tal shopping, num restaurante especializado em grelhados, logo na entrada, no mesmo nível da rua.
Sentamos, pedimos as bebidas, todos falavam e era difícil
compreender o que outros diziam, pois, no fundo, ninguém queria escutar, queriam mesmo era falar, falar, falar... Os sorrisos eram meio idiotas - era preciso expressar atenção, compreensão do que estava sendo dito pelo companheiro ou companheira, sentado ali à frente ou ao lado.
Deixei o burburinho prosseguir, armei uma fisionomia de seriedade compromissada com o ambiente, de tal forma que transparecesse, claramente, a preocupação de um executivo em se alimentar, discutir negócios para não perder o tempo do almoço e, no mais breve prazo, pagar e sair para trabalhar...
Deixei o pensamento em ponto morto, naquele estágio adequado para aderir a qualquer assunto – futebol, política, bolsa de valores, desfile das escolas de samba, qualquer coisa que viesse inescapável e objetivamente em minha direção, exigindo uma resposta atentamente vaga, educada, inteligente, mas, sobretudo, rápida, comprovando a participação interessada na conversação geral. Não é coisa fácil de se fazer com naturalidade, exige algum treino e anos de prática. Olhei por cima das cabeças, procurei ler o nome das lojas mais além, não entendi o que o Exército da Salvação estava fazendo por ali com sua pregação destoante – “ah, é o Natal que está chegando...”
De repente, aconteceu. Do lado esquerdo, debaixo de uma palmeira de plástico, decoração muito bem feita por sinal, parecia natural, a encontrei. Encontrei, e tive a certeza instantânea do fato: - era, finalmente, a mulher dos meus sonhos, o amor que sempre procurara, em todo o mundo, diuturnamente, e que, naquele preciso momento, a encontrara. Estava ali, do outro lado do salão, ao lado da palmeirinha de plástico, de frente para mim. Havia sonhado tanto com ela, contemplado sua imagem com tanto rigor e minúcia, nos meus sonhos, que nenhuma dúvida pairou em minha mente. Era ela.
Primeiro notei os lindos e tranqüilos olhos azuis, depois um ar de certo espanto com o ambiente, emoldurado por cabelos sedutoramente louros, que balançava de tempos em tempos para arrumá-los: - tique nervoso ou estratégia de sedução? Rosto expressivo e belo de mulher madura, inteligente, que sabe o que quer. Gestos comedidos ao comer suas verduras, típico de moça educada, nos mínimos detalhes, em um colégio de freiras francesas, rigorossíssimas em questões de etiqueta. O traje austero, de tom escuro, mas suficientemente negligente para deixar perceber o corpo esguio, seios pequenos, curvas pronunciadas nas inclinações, depressões e lugares certos. O joelho lindo, exibido com discreta distinção, proclamava o restante – nem muito ossudo, indicativo de uma magreza sem graça, muito menos apontando para carnes em excesso... Mulher perfeita, completa. Sem dúvida, era ela.
Mais não consegui ver – estava acompanhada por outra
mulher, morena alta, cabelo curto, falante, daquelas que falam gesticulando, entremeando suas expressões com risadas espontaneamente ensaiadas – expressivo produto final de uma prolongada análise, com analista lacaniano, com certeza, aqueles que priorizam o porquê das palavras usadas, seis anos de divã, no mínimo... Minha amada ouvia, quase não falava, a outra não dava oportunidade de participação.
Parei de comer, não prestei mais atenção nas conversas e gritei, (para mim mesmo, é lógico): é ela, a minha Dulcinéia, a Helena lá de Tróia pronta para ser raptada, Desdêmona incauta prestes a ser seduzida por algum Otelo canalha.
Senti um calafrio, fechei os olhos na certeza temerosa da necessidade de um teste definitivo: - ao abri-los a miragem teria desaparecido... Abri os olhos com resolução, afinal sou corajoso, acostumado com as adversidades, mas lá continuava ela, ao lado da plantinha artificial, tranqüila, levantando-se para pegar uma sobremesa, escoltada pela amiga que não parava de falar.
Levantei também e parti direto para o grande encontro. Quem disse que consegui... Rodei atrás da musa desconhecida, esbarrei de propósito e com raiva na acompanhante, odiando todos aqueles homens com olhares pervertidos e lúbricos, que lhe dirigiam, desejando possuir, conquistar o
meu encantamento, o sonho da minha vida inteira.
- “Malditos, se ousarem lhe dirigir a palavra se haverão comigo”... Percebi que o estado de espírito que me possuía, entre o belicoso e o aparvalhamento paralisante, me impedia de dizer qualquer coisa para a minha amada. O que fazer? Vou perdê-la de vista. - “Fale de uma vez, idiota. Mentecapto, apresente-se enquanto ela está em pé. Vai. Pelo menos fale com a amiga, arranje um pretexto qualquer seu panaca, indeciso. Vai covarde – é agora ou nunca, vai”.
Pensava, assim, com velocidade e com raiva da minha falta de iniciativa diante dos acontecimentos.
Ela voltou-se, deve ter percebido minha cara de espanto, sorriu: – “com licença...” disse, ultrapassando-me pela direita e dizendo para a amiga, ouvi com clareza o som mavioso da sua voz: “a torta de limão daqui é uma delícia, prove”. Por quê sorrira? Um sinal de simpatia? Por quê pedira licença? Será que ela também me percebera e estava procurando um pretexto para iniciar uma conversação? Será que eu estava babando e isto lhe chamara a atenção? Tomei do lenço, limpei a boca, voltei para minha mesa, tropeçando num garçom que derrubou a bandeja.
Sentei, sem sobremesa, esquecera, até, de provar a torta de limão. Olhei para minha querida que me encarava, pois, com o barulho que provocara, havia lhe chamado à atenção. Bendita bandeja ruidosa. Providencial
garçom, que atravessara o meu caminho, pensei eu. Olhou curiosa na minha direção, rapidamente, e fez um breve comentário com a amiga que virou a cabeça, com determinação, para me encarar, acintosa e meticulosamente. Sorri para a intrujona que, com um leve balançar de cabeça, correspondeu. A mulher errada é que havia me percebido – “droga”. Procurei migalhas de pão na toalha para ter alguma coisa para ocupar as mãos enquanto o tempo passava inexoravelmente – “vou perdê-la, vou perdê-la meu Deus”.
Olhei, com cuidado, em direção ao meu destino de amor, com medo de ser flagrado pela amiga, agora atenta, que me balançara a cabeça – “oferecida”, falei com raiva para comigo mesmo. Mas quem estava me espreitando, também cautelosa, era a minha amada – a peguei de surpresa e só entendi um infinito interesse, carinho e amor pela minha pessoa, naquele seu lindo e rápido olhar...
Levantei-me animado, impetuoso e determinado, fui até a sua mesa, entreguei-lhe meu cartão, em silêncio constrangedor, seguido de uns balbucios abobalhados, que consegui articular, algo parecidos e se fazendo ouvir como um “com licença”, “o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”, “obrigado”, “provavelmente chove hoje no final da tarde”, nem lembro mais o que disse.
No cartão havia escrito, com mão trêmula pela pressa e excitação, sem omitir o nome do autor é claro, um soneto que dizia tudo o que
eu queria dizer e muito mais. Como são amigos importantes, nestas horas de embasbacamento, esses poetas: - eles sabem dizer tudo muito bem, com as palavras certas, economicamente precisas:
“If I could write the beauty of your eyes
And in fresh numbers number all your graces,
The age to come would say, “This poet lies –
Such heavenly touches ne’er touched earthly faces.”
Ela agradeceu, séria, dizendo em seguida: “não quer sentar e tomar um café? Vou pedir mais um”.
“É, senta aí” disse a amiga exuberante. “Meu nome é Ana, a minha amiga é a Violeta”, disse, estendendo a mão um tanto calosa.
“Eu me chamo Alberto”, pedindo, ao mesmo tempo, mais três cafés ao garçom, que se postara ao meu lado, possivelmente imaginando que sairia sem pagar a conta da minha mesa de origem. Enquanto isso ocorria, percebi que minha amada lia o meu cartão e o poema que transcrevera. Sorriu levemente, balançou a cabeça e perguntou-me: ”moras em Brasília?”
-“Sim, moro”.
-“É uma cidade triste, não é?”
-“É, é muito chata, mas estou me mudando aqui para o sul. Sou gaúcho, vou me aposentar em breve e irei morar lá em cima da serra, um lugar lindo, onde neva de vez em quando.”
“Humhum” - ela fez esse som que liquidou de vez minhas últimas resistências. Num átimo lembrei-me do Poe e do seu corvo pousado em um busto de Palas, num quarto frio de noite invernosa e de saudades imensas da sua Leonora e a ave a dizer, soturna, “nunca mais...”. A minha avezinha, ali à minha frente, que entrara na minha vida no restaurante de um shopping, a minha flor recém encontrada, violeta, linda, referindo-se ao resumo da minha expectativa de vida futura, enigmática e sedutora, sussurrou-me um definitivo “humhum”. Não foi uma negativa, nem teve uma entonação de desprezo, como o da ave agourenta do Edgar. Soou mais como uma expressão, aconchegante, de decisivo interesse carinhoso e um poderoso estímulo sutil para que continuasse a falar. Tantos sinais para perceber, decodificar e entender, em tão pouco tempo, que senti a cabeça zonza mas mesmo assim animei-me. Não sei o que me deteve para que não a tomasse nos braços e ali, na frente da multidão satisfeita e segura na sua medíocre mesmice diária, proclamaria, num beijo apaixonadíssimo, radicalmente, a supremacia inigualável do amor. E todos os presentes iriam ficar enternecidos, por instantes, com aquele gesto determinado de carinho e paixão. Depois, esquecidos do que presenciaram, retornariam obedientes ao tédio de suas vidas monótonas.
Chegaram os cafés, com rapidez pouco usual em restaurantes cheios. “Droga, poderiam ter demorado mais”. Bebemos em silêncio. Paguei. Ela levantou-se, como que tocada por descarga elétrica e ereta, séria, rapidamente saiu, sem mais palavras do que um simples - “foi bom te conhecer, boa viagem”. Sequer estendeu a mão. A amiga saiu junto, rindo com todos os dentes à mostra, mas me disse um tchau bem alto e simpático, assim como um consolo, um gesto de solidariedade, abanando a mão para o solitário abandonado em pleno salão. Para mim todo o restaurante vira, ouvira e entendera a minha desgraça....
Pensei em suicídio.
Desarmado não podia estourar os miolos. A palmeirinha de plástico, que até parecia natural, não suportaria meu peso num enforcamento, muito menos, num gesto dramático, o empalamento, de corpo inteiro, testemunhal do meu desespero.
Saí, cabisbaixo, sem olhar para os lados. Voltei para o seminário e tentei prestar atenção para mais uma explicação, de um economista paulista, sobre as causas estruturais da inflação no Brasil. No dia seguinte, sem outras opções, regressei à Brasília.
Dias depois recebi um cartão da Violeta, (Sil como era conhecida), agradecendo o soneto de Shakespeare.Tomei coragem e liguei para o número que enviara. Ela estava no banho – pediu que ligasse mais tarde. Durante 31 minutos fiquei imaginando, levitando em sonho místico, aquele banho..., lá longe, em Porto Alegre. Então liguei e nos falamos, longamente.
Nos encontramos.
Conversamos muito.
Passeamos de mãos dadas lá em cima da serra, numa estrada de terra, em Ana Rech, uma linda paisagem...
Nos amamos.
Vivemos felizes para sempre.
Nossa neta adora ouvir esta história.
Desde então, não paro de sorrir
Eurico de Andrade Neves Borba, 65 anos, formado em economia, foi Professor Associado, Diretor do Departamento de Economia, Vice-Decano do Centro de Ciências Sociais e Vice-Reitor da PUC-RIO; Diretor Geral e Presidente do IBGE; Diretor Geral da Escola de Administração Fazendária; Secretário Geral Adjunto do Ministério da Educação; Presidente do Conselho Nacional da União dos Escoteiros do Brasil; Presidente do Conselho Curador da Funarte - Fundação Nacional de Arte; Conselheiro do Conselho Nacional do Meio-Ambiente; Conselheiro do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; Conselheiro do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade. Atualmente é Secretario Executivo da ANAMEC - Associação de Mantenedoras de Escolas Católicas, Vice-Presidente do Centro de Estatísticas Religiosas e Investigações Sociais - CERIS. Foi um dos fundadores do PMDB e do PSDB, militou na política estudantil e partidária. Conferencista sobre problemas sociais, há vários anos escreve artigos em jornais e publicou os livros Por Uma Ordem Social Solidária, A Amada do Sonho (poesias), participando com seus escritos da Antologia Literária 2 da Academia Baurense de Letras, da qual é membro correspondente. Aposentado, reside em Ana Rech, (Caxias do Sul – RS).