CAMINHOS QUE ME LEVAM...

Gosto muito de música, sempre de acordo com as ocasiões. Reputo-me versátil, passional... Adoro as músicas clássicas, orquestradas, assobiadas, os cantos gregorianos, óperas... Os mantras relaxam-me o espírito, a música sertaneja, volta-me às origens. Gosto da magia, da paz de uma noite estrelada, da beleza do mar no açoite de suas vagas, da natureza verde prenhe de flores e frutos.

Gosto de um pôr-do-sol nostálgico, esgueirando-se entre montanhas, iluminando os restos de tarde debulhados em sombras; do marulhar de riachos, da ventania na copa das árvores, do gorjeio da passarinhada... Gosto de muitas outras coisas que tocam os meus sentimentos, ouriçam o meu espírito, ajudam o meu aperfeiçoamento enquanto caminheira desta vida. Gosto de tudo o que acalenta o coração, os ouvidos e olhos, fazendo-me melhor, aumentando o prazer, a crença em mim mesma e a vontade de viver. Por exemplo: gosto de chuva.

E agora está chovendo aqui! O sol ainda brilha. Na harmonia desses dois fenômenos, um arco-íris abraça a abóbada celeste, relembrando a aliança de Deus com os homens, conforme nos ensina a Sagrada Escritura (Gn 9,12). Nesses momentos sinto saudades de tudo. Fico carente e quero colo, quero mãe, quero amor... Passa-me sempre um sentimento de aconchego, de ternura...

No espelho da vida tento mirar-me! Já se vão gastos os dias de existência. Mergulho numa retrospectiva de mim mesma. Divago por caminhos mil. Imagino utopias. Escapam-me certezas! Quero erguer minha bandeira, carregar o meu fardo. Quero continuar carpindo versos, sendo aluna dos meus sentimentos e parceira do coração.

De minha catarse, sou mestra. A vida individualizou-se para mim. Vestiu a fantasia para me fazer sorrir! Vida, vida minha! Você deu tantas voltas, reviravoltas e levou-me as pernas, o meu caminhar faceiro, gostoso, ligeiro. Que saudade! Que saudade, mesmo!

E saber que nesta vida não voltarei a andar, às vezes cava-me uma cratera bem lá no cantinho da alma. Não posso ceder ao desalento. Sou guerreira de mim mesma, soldado de minha própria batalha.

Sentimento incólume

O sentimento,

Guardião do tempo,

Ainda está incólume

Na cela do peito.

Um gosto de saudade

Impregna a vida.

A solidão se faz!

Paira no ar a indiferença.

Parece desconhecido o lugar,

Ermo, esquisito, sombrio...

E a casa está vazia

A sangrar um silêncio doentio,

Um tédio ambulante

Que mata a fantasia.

Fecham-se portas e janelas.

Quebra-se o encanto.

Fragmentada,

A emoção escapa,

Plangendo os cantos da alma,

Onde as sombras encolhidas

Entreolham-se estáticas

No sarcasmo do tempo.

E a chuva continua. Gosto tanto de vê-la, senti-la. Para mim, significa o poder de Deus. Como gostaria de emaranhar-me nela, misturar-me nos seus pingos, deixando-me embalar pela música de sua semeadura, feito alguém andante, sem tarjas, sem compromissos. Desta altura, esse prazer fica meio obstaculizado. Sou baixinha e não alcanço as janelas. Apenas a vejo na horizontal, por meio do paralelo dos seus parapeitos. Vejo, por meio de minhas celas, de minhas amarras. E a vidraça molhada chora comigo a saudade de um tempo que se foi.

Ainda devo agradecer, pois tenho os olhos para admirar o belo! Tenho o olfato para sentir o cheiro da terra molhada e de todas as demais fragrâncias. Tenho um coração que vaga desvairadamente pelos caminhos da fantasia. Que bom ser ele um coração vagabundo, aventureiro, coberto de andrajos desta vida, pois, com certeza, esta rota vestimenta receberá conserto. Quem sabe noutros mundos, noutras paragens, além da terra.

A luz do dia se foi. É noite aqui. O vendaval continua. A ventania sacode as janelas. A chuva me faz bem, traz-me de volta o passado tão distante! Os meus nove anos, na fazenda, quando debaixo do temporal corria pelo campo, pelo milharal e imaginava um Deus forte que tudo fazia: mandava a chuva para encher o riacho, os barreiros, fazer granar as espigas de milho que se tornariam alimento. Eu via Deus nas nuvens escuras, carregadas de chuva.

Costumava vê-Lo ao amanhecer, de rosto redondo, incandescente, no primeiro raio de sol que despontava no horizonte, qual facho de luz dissipando a escuridão. À tardinha, Ele varria o céu e viajava com as nuvens na luz mortiça do pôr-do-sol, escondendo-se na névoa escarlate do crepúsculo matizada de ouro e prata, para retornar na lua, que, ostentada no alto, feito um prato de fogo ou de ouro, era a rainha absoluta das noites frias de minha infância.

Houve um tempo em que eu pensava que o trovão acontecia porque Deus estava irado, nervoso. Significava um castigo. Costumava me esconder e rezar. Ah! Meu tempo de criança! Quanta saudade! Como eu era feliz, e não sabia! O meu correr saltitante e travesso pelas enxurradas, a desobediência que me elevava aos píncaros dos cajueiros, das amoreiras, das mangueiras... O galope no lombo dos cavalos me fazia livre, dona dos campos e senhora do meu tempo. Quanta travessura e quanta alegria, quanta vida!

Que mundo pequeno era o meu! Cheio de muitas laranjas, melancias, limas, bananas e um riacho para tomar banho, onde as libélulas faziam seus vôos rasantes. A água clarinha, caída de uma pequena cascata, era o trabalho de Deus. Ele a havia feito. Havia pintado o céu de azul e encaminhado as águas para os rios, fazendo várias quedas até chegar ao nosso riacho.

Hoje sei que Deus não fica com raiva, mas as pessoas, essas sim. Não sabem perscrutar a essência. Falta compaixão. As pessoas que nos deviam querer bem usam desse sentimento como se gente a gente não fosse. O homem é o exterminador do próprio homem. É o seu próprio carrasco. Constrói o seu fado. Lamentavelmente, temos pouca noção de fraternidade. As diferenças sociais são gritantes. Estamos numa desvairada corrida pelo poder, pelos bens terrenos sem nos preocupar com os valores do espírito, com os dons humanísticos, uma vez que somos a imagem e a semelhança do Criador.

A chuva continua. Daqui, eu ouço o chiado da fricção dos pneus dos carros no asfalto. Imagino os vidros embaçados e os pingos d’água espirrando, as pessoas tentando achar abrigos e as flores da praça sorrindo. O cheiro da chuva, lavando a poeira, aguça os meus sentidos. É prazeroso para mim.

Está trovejando e o barulho estridente se faz ouvir. Com ele, uma emoção mareja-me os olhos. Bate-me à porta da alma uma certeza e uma grande saudade de Deus, que me era mostrado por meio do gorjeio dos pássaros encolhidos nas laranjeiras depois da chuva, do cantar do galo no alvorecer, das ninhadas de pintinhos encontradas de surpresa, além do anjo guardião invisível que me guiava os passos pelo pasto, entre o gado...

Tenho uma lembrança muito forte do meu tempo de criança. Quem sabe, tivesse uns três anos. Morávamos numa fazenda. Um temporal abalava as portas e as janelas. O vento assobiava forte, levando o que podia. Mamãe, na sua missão de protetora, forrara uma bacia, colocara-me dentro e em seguida posicionou-a debaixo da mesa. Assim eu estaria a salvo dos pingos de chuva. Devia ser mesmo bem pequena, pois, a meu ver, a mesa era muito grande e a bacia também. Tudo parecia um tornado que invadia o meu pequeno mundo. Mamãe, na lida, parecia não parar, acudindo as coisas.

Hoje, do alto de um prédio, erigido no coração de minha cidade, contemplo a chuva novamente. Não sinto o vendaval das enxurradas nem a fúria do vento sacudindo as portas, destruindo tudo. Numa análise, não sei dizer se sou ou não mais feliz: se observando do alto, como o faço agora, ou metida na chuva, como nos velhos tempos.

Da minha janela, ouço a música dos carros parados na avenida. Naquela época, era o piar da juriti, do pássaro preto e do inhambu. Era o mugido do gado, o alvoroço das galinhas no terreiro, o relinchar dos cavalos, o canto triste da sariema e o gemido do carro de bois. E mais lindo ainda, o barulho de folhas levadas pela ventania. Verdadeira sinfonia do meu sacrário de lembranças.

Lembrar é viver! E, se é assim, estou voltando ao meu passado. Quanto tempo ficou para trás! Parece um teatro, a vida! Uma sucessão de atos, de cenas... Não sei como pude viver tantos papéis! Não sei como adquiri tanta paciência, tanta resignação, tanta força. Sou um seixo rolado, polido pela dor.

Seixo rolado

A. Carrijo

Eu era uma pedra,

Cheia de arestas,

De pontas agudas

Que feriam os que me tocavam.

Mas

Os meus sofrimentos

E os pés que me pisaram

Desbastaram-me as quinas,

Abateram-me as agulhas.

Hoje,

Quando apalpo o meu ser

Com as mãos da consciência,

Não me reconheço no passado.

Como estou diferente!

Sou um seixo rolado,

Polido pela dor.

Obrigado, Senhor!

Sou, realmente, um escravo obediente que esconde a sua rebeldia. Sou um condenado que caminha para a forca em silêncio. Se o faço com resignação, terei mérito. Se não conseguir, receberei o castigo nas inúmeras reencarnações que se seguirão para a escorreita evolução deste meu espírito rebelde e atrevido.

Sei que sou responsável por tudo o que me acontece na vida. Minhas atitudes criaram o meu destino. Não existe injustiça. Deus está no leme de tudo. Se fui atingida por essa fatalidade é porque precisava aprender alguma nova lição, conforme explica Zíbia Gasparetto.

Às vezes penso: o que terei sido em outras encarnações? Por que fiquei sem o meu caminhar? O que terei feito com ele? Tudo isso são bobagens, pensamentos externados nessa escrita besta e sem nexo.

O certo é que estou aqui, viva e na minha cadeira de rodas. Não tenho tanto tempo assim. Foram-se os verdes anos, a algazarra de minha juventude risonha e doce, os tempos de colégio de freiras... Não obstante o coração se ourice, tente romper a camisa-de-força, a mordaça tão bem ajustada à sua dona, resiste. É de ferro! Com certeza, resistirá durante minha jornada neste planeta.

Foi-se a minha liberdade! O meu ir-e-vir cheio de graça, de trejeitos. Poderia ter sido uma bailarina na vida, mas tive a vida para bailar, gingar até encontrar os meus próprios caminhos, lapidar os meus cantos, aparar as arestas. Agora o filme acabou, a peça foi truncada antes do término. O pano caiu!

Tenho por amiga quatro rodas de uma cadeira, a quem devoto gratidão pela tecnologia que permite misturar-me aos demais, sentir-me inteira outra vez. Mesmo assim sinto orgulho da caminhada. Cada um tem o que merece. Apraz-me a oportunidade de viver assim, pois sei que quando o discípulo estiver pronto, o mestre, com certeza, aparecerá.

A vida continua. Ainda sou perseguidora de sonhos. As portas me fascinam. A vida ainda acontece inteira no coração. Acredito no amanhecer, no poder recomeçar a cada dia. Sou a síntese dos meus desejos, compilação de inércias extáticas, mas, ainda, uma inesgotável fonte de encantamento pela vida, pelos amores, pelo belo, pela arte de fazer versos.

Genaura Tormin
Enviado por Genaura Tormin em 06/04/2008
Reeditado em 06/04/2008
Código do texto: T933684
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