Faixa de pedestre

Atravessá-la, um imenso desafio para mim, disso meus olhos sabiam. O perigo mortal corria de um lado ao outro, numa inclemência além de cruel para quem a ignorasse. Os mais atrevidos se jogavam na ferocidade do desafio. Meu medo manifestava-se em excesso de precaução. Eu não tinha a idade nem a saúde de ontem. Até há alguns dias eu enfrentava-a com certa imprudência, mas hoje, jamais. Meu corpo aprendera muito bem com aquele acidente de maio. Nunca mais faria outra cena igual àquela. A Rio Branco é muito mais perigosa do que a outra.

Ao sinal permissivo, ainda tentei pôr os pés nela. Demorei além da conta. Minha perna direita doía muito. Vi a multidão ir-se como abelhas espantadas de alguma colmeia incendiada. Entristecido, voltei a olhar nas duas direções e engendrar uma nova investida. A plástica estirada e comprida da Avenida nada ajudava – tal paquiderme o era – , calada, insensível, morta! Não traduzia quanto perigo escondia em si própria.

O homem me olhou com desdém e se foi. O outro homem já havia cumprido o trajeto quando, olhou de lado e me enxergou na outra margem. O bom homem voltou para onde eu continuava a alimentar minha aflição, impotência, medo...

Quando estávamos lado a lado, uma desconhecida, distraída a ver as vitrines bem arrumadas da avenida, trombou em mim. Caí e chorei de dor. Aquele homem que havia resolvido ajudar-me, não quis mais fazê-lo e voltou ao caminho para onde, antes, havia se dirigido.

-Meu Deus, ele se foi...

-Desculpe-me, senhora, eu a derrubei.

-Desastrada! Espantou o homem que me ajudaria...

-Que homem?

-Nenhum!

Nem me lembrei de pedir-lhe ajuda, tanta raiva tive dela após o empurrão e a queda. Levantei-me do chão com a ajuda de uma jovem bem vestida que ia passando. Uma pena que não iria seguir pelo caminho que eu também pensava seguir.

Chegou novamente a hora da travessia. A maior parte da multidão que esperava, deixei-a ir à minha frente. Lá fui eu pôr os pés no chão preto, bordado com as faixas brancas da lei. Cadê força, cadê nada. Quando dei por mim, estava no meio da avenida larga, sob o sinal aberto para a passagem das dezenas, centenas de carros. Subiu-me um frio na barriga, apavorei-me e resolvi fechar os olhos. Quando os pude abrir, estava já deitada, bem servida e com as pernas amarradas ao teto sobre a cama de um hospital público.

-Onde estou?

-No Hospital Central.

-O que houve?

-Lembra-se do sinal aberto?

-Sim...

-Achou de enfrentar o perigo e se deu mal. Foi atropelada por uma motocicleta.

-Mas eu não tive culpa...

-Teve sim! O motoqueiro faleceu, seis carros se chocaram e a senhora ainda incomodou o corpo de bombeiros que teve que improvisar uma operação de socorro. Quer mais?

-Meu Deus! Sou, além de uma velha solitária e mutilada, uma assassina e contraventora da ordem pública. Quanta coisa nunca quis ou pensei ser!

Quando me deram alta do hospital, simulei um acesso de loucura e foi então que me transferiram para um hospício, de onde fiz voto de nunca mais arredar o pé. Não forneci meu endereço correto, aleguei sempre não ter família no Rio e pronto. Quando me perguntavam sobre qualquer coisa, nunca sabia responder corretamente.

-Nasceu, faleceu aos noventa e oito anos de idade, solitária, triste e loucamente sã! Era o que nós notávamos nela.