O nome do réu
Eu compro de duas semanas para vender as oitocentas rezes. Meu Estado não é tão grande quanto o seu. As vendas são por porções. Vou vendê-lo no varejo, me aguarde.
Fica acertado seu gado todo, doutor Sílvio. A gente pesa e multiplica pelo valor de mercado. Preciso, então, Raimundo. O negócio fica fechado. Deixo um fio do meu bigode e levo um do seu.
Sentaram-se para almoçar. Na casa humilde da rua São Benedito, os olhos da rua viram o homem rico transitar na casa do homem pobre. O homem pobre era probo, astuto comerciante, um verdadeiro homem do agronegócio.
Eu era pequenino. Não compreendia o movimento estranho que faziam da sala à cozinha. Mamãe chorava muito abraçada a um cobertor grosso e a arrumar uma pequena bolsa de viagem. Não me respondeu ao que lhe perguntei sobre seu choro.
Prenderam papai. Acusaram-no de ter matado o doutor Sílvio. Este não havia chegado à sua residência na Bahia e, o que se sabia era que seu último paradeiro tinha sido exatamente na nossa casa.
Estava claro o porquê da tempestade, mas o vento não devia estar ali, mas noutra seara, longe de nós.
Mamãe me pôs no braço, apanhou a pequena valise onde acabara de guardar o cobertor grosso, atravessou a rua e já estava na calçada que nos levaria à delegacia de plantão onde papai estava preso. A noite já estava escura. Ia dar quase meia-noite. À frente do prédio da D.P., avistamos um bom punhado de amigos de papai. Mamãe aumentou o choro, cortou alas e, em frente ao delegado, disse:
-Meu marido, onde está?
-Mas a senhora, com esta criança nos braços...
-É para ver o pai; talvez vocês o matem e pelo menos o filho vai vê-lo pela última vez.
-Não diga isso, minha senhora; é um absurdo.
-Como se não fosse um absurdo bem maior prender um inocente.
-Os fatos dirão!
Quando papai nos viu, exteriorizou sua emoção com uma comovedora prantina. Tirou-me dos braços de mamãe e disse:
Por que trouxe o Francisco para um ambiente desses?
Voltamos mais entristecidos ainda. Esperneei para ficar com ele e não me deixaram. Retornamos pela mesma calçada da vinda. Mamãe rezava e chorava. Eu limpava as lágrimas que jorravam de sua face como única forma de oferecer-lhe os carinhos do acalanto. Quando chegamos em casa, o homem estava. Era um homem forte, de feições rudes, mas parecia trazer alguma notícia interessante.
-A senhora é a esposa do senhor Raimundo?
-Sou, por quê?
-O deputado Antônio Lionti pediu para eu apanhá-la e levá-la até onde ele está.
-O compadre Antônio?
-Ele mesmo, senhora.
-Vou sim. Aguarde um segundo.
Passou-me para os braços de uma tia minha, irmã de papai e, andando apressada para o quarto enquanto ajeitava o cabelo, apanhou o terço de madrepérolas e se foi com o dito homem. Saíram em um velho Ford preto. A direção que o carro tomou foi oposta à da delegacia. Ficamos curiosos com o desfecho que deveriam ter os acontecimentos. Para onde teria ido mamãe?
-Comadre, tenha paciência. O compadre Raimundo não pernoitará naquela delegacia. O que fizeram com ele foi injusto demais. Vamos resolver.
-Compadre, e o doutor Sílvio?
-Mataram! Um crime bárbaro.
-Já sabem quem?
-Já!
-E aí?
-Foi Raimundo!
-Meu marido seria incapaz disso, compadre.
Iam dar duas da madrugada quando soltaram papai. Mamãe se preparava para ir novamente até o prédio da delegacia quando uma dúzia de amigos o trouxeram. Mamãe abraçou-se aos prantos com ele e disse:
-Diga, meu amor, não foi você?
Ele, sorrindo, talvez em um gesto de defesa pelo intenso momento de emoção por que passava, disse:
-Quem matou o doutor Sílvio foi Raimundo!
-Por que você diz isso, meu amor?
-E você acredita que eu seria capaz de uma atrocidade dessas?
-Não...
-Pois continue acreditando nisso.
-Mas então, quem é o assassino?
-Raimundo!
Um velho comerciante baiano da cidade de Feira de Santana, chamado Raimundo, havia contratado dois pistoleiros profissionais para aniquilar a vida do doutor Sílvio; encrenca velha de um passado muito remoto. E por ele ter estado, em sua última parada, justamente na casa do outro, de igual nome, o homem pobre de Maceió, recebeu Raimundo o fardo pesado de responder pelo crime do outro, o que este Raimundo nunca havia sequer imaginado.
-Se eu pudesse mudava teu nome, Raimundo.
-Raimundo por Raimundo, só não quero mesmo é ser Sílvio.
-Ai, meu Deus, longe de mim ficar viúva.
-E então, não é melhor que eu fique com o nome de batismo?
-Ah!..., mas nem todo Raimundo é igual...
-Nem tampouco todo inocente vive livre.