Algemas e rosas

E a noite chegava, o barulho ensurdecia e, sem dormir bem, ele se ia ao trabalho novamente cansado, olheiras profundas, apanhando condução a condução e tendo por fim que andar quase dois quilômetros de uma estrada barrenta; chegava à dita casa antes das sete da manhã. Um homem pobre caminhava à mansão onde laborava. Havia dentro dele duas almas.

Feito uma minhoca sonolenta, punha-se a mexer com as mãos desluvadas na terra preta do jardim imenso. Iniciava pela área da frente da mansão. Retirava as folhas das roseiras, ainda pouco amareladas, dias antes que caíssem a sujar o gramado , empurradas pela ventania que chegava forte e imperdoavelmente arrebatava as murchas.

O tiro não foi lá de tamanho assustador; ouvi um estampido sem estardalhaço. A casa continuou silenciosa até quase o meio-dia, quando eu resolvi ver de perto o que havia acontecido. Por trás, fui à cozinha, lugar onde sempre meus passos tiveram intimidade: não havia ninguém nela, nem sinal de desarrumação. O fogão estava limpo; tudo em seus devidos lugares; nem cheiro de comida se sentia no ar, de tão limpa que estava; era como se os seus moradores estivessem de férias há meses e alguém mantivesse seus cômodos em perfeita limpeza. Eu estranhei o que vi.

Mas eram sete os que ali moravam. O casal de velhos, nem tanto, não se mostrava aos ares do lado de fora do casarão; tinha tempo de dormir, resmungar com dores e tomar remédios quase que de hora em hora. Patrícia saía para o conglomerado de lojas com seus pais, antes das nove da manhã. Ismar e Milton, esses sim, eram os verdadeiros problemas da família Ucesi: iam dormir lá pelas dez da manhã e só despertavam no finalzinho da tarde; Boates, badalações, festas e mais festas enchiam as cabeças vagas dos dois.

Invadi a casa, cômodo a cômodo, sem encontrar o menor sinal de anormalidade, além, é claro, da ausência de gente.

No primeiro andar, no quarto do casal: porta fechada, trinco quebrado e um som esquisito que dava para o lado de trás da casa. Desci as escadas às pressas e me dirigi ao lado leste do imóvel. Olhei para cima e pude encontrar os dois na varanda, cabisbaixos, com suas cabeças escoradas no parapeito de metal da varanda. Gritei pelos dois jovens.

-O que está acontecendo que ninguém desceu até essa hora?

Milton tentou levantar a cabeça e foi impedido pelo irmão. Ficaram como estavam.

-Patrícia, onde está?

Não obtive respostas. Demorou menos de um minuto e vi que alguém andava em direção à varanda: era ela, Patrícia, também triste, meio desfigurada. Falou-me com a voz trêmula, cheia de medo, esquisita. Não estava como nos dias comuns.

-Vá para sua casa, Herculano; hoje não lhe é necessário ficar aqui. Amanhã! Amanhã basta vir mais tarde um pouco. Estamos descansando. Agora vá. Não se preocupe com o jardim.

O jardim do casarão era, na geografia de tudo, o lugar mais cuidado e exigido. Eu não me conformava com o que ouvia. Estava acontecendo algo de estranho.

- Seus pais, onde estão?

-Não nos incomode mais. Já lhe falei que estamos repousando.

-Hoje é segunda-feira!

-Mesmo assim. Estamos todos bem. Faça-nos o favor de retirar-se daqui! Até amanhã.

-Houve outro disparo. Ainda extasiado, eu vi quando os pais de Patrícia correram até a varanda assustados, mas sem falar qualquer palavra. Minha ansiedade aumentou.

-Doutor Hildo, o que está havendo? Onde estão seus pais?

-Herculano, ouça minha filha e vá para sua casa.

-Vou chamar a polícia!

E aí os disparos foram muitos. Os cinco viraram para trás como se assistissem a um espetáculo de morte. Corri gramado afora, alcancei o portão e me encaminhei até a delegacia mais próxima. Dei de cara com a autoridade e dela solicitei ajuda. Quase não pude falar.

-O que está havendo, senhor?

-Um assalto. Família Ucesi. Estão todos presos no andar de cima. Os velhos já estão mortos. Muitos disparos, muito sangue..., só agonia. Por favor, ajude-me.

Distava pouco dali o casarão formoso, centrado em amplo terreno gramado, cheio de rosas. Seus muros altos diziam da fortaleza que a arquitetura havia feito, quase centro de São Paulo, quase interior. A polícia voou até o endereço e o invadiu apressada. Canto por canto e chegaram ao primeiro andar.

Na cozinha, a cozinheira e suas duas ajudantes trabalhavam normalmente; os dois rapazes foram acordados e, assustados, não entenderam o que estava acontecendo. Patrícia já havia saído com seus pais e os velhos assistiam a um programa de televisão matinal, comum à rotina de ambos.

Abordados todos, não restou ao comandante do policiamento requerido senão solicitar suas desculpas aos que estavam em casa e foram incomodados por sua visita inesperada.

A queixa, ficada para trás, exigiu dele a procura do outro. Como a justificar a ida do jardineiro até a delegacia? Cadê o homem? Era a hora de ajustar as contas; polícia não é brinquedo para estar de mão em mão, sem uma justa causa para ser chamada à ação. O tempo é ouro.

De ferramentas em mão, Herculano cortava os galhos amarelados por entre o roseiral, tranqüilo, como se o mundo ao seu lado não lhe oferecesse qualquer risco. Indagado pelo policial que comandava o grupo, sorriu-lhe e, retirando uma linda rosa branca, lha ofereceu.

-Não é linda?

-O senhor está preso!

-Não..., estou livre, ajeitando o jardim..., meu laborão diário. O que pensam que eu fiz?

Saiu dali algemado, ele, sua jovem esquizofrenia que havia, justamente entre flores, se manifestado diante do desconhecimento alheio. Teve um surto rápido do traste; a doença, mesma, veio-lhe alguns meses depois, para nunca mais deixá-lo cuidar das lindas rosas do roseiral da família Ucesi. Que pena! Que mal fez a doença às rosas, ao jardim e aos homens de dentro e de fora da casa!

Levaram-no ainda com as mãos sujas de terra, mas a segurar entre os dedos a dita rosa branca rejeitada pela autoridade, que murchou dias antes de ele ir até a outra prisão: o nosocômio judicial. Diferente da psicose, dela, ele livrou-se já quase totalmente despetalada.