Quartéis e vidas
A vida no quartel é seca; a de um primeiro Sargento, mais ainda! Não há aventuras e sim, cumprimentos do dever cívico. Trabalho o dia todo!
Nos últimos meses, o sofrimento dela vinha convencendo-me a aceitar a fatalidade; depreendia que das sementes nascem novas árvores e assim teria que ser com ela; e eu surdinava comigo mesmo um luto antecipado. Cada dia que passava, maior ficava o seu mal; os telefonemas que eu recebia me informavam cada pedaço da cruz que ceifava sua vida e ofertava-lhe o caminho do dia último. Entre as atividades árduas do quartel e eles, eu oferecia-me o tempo para dar passadelas em Caruaru, onde ela morava; ia às sextas e retornava aos domingos.
Na última vez que estive lá, sem que nada ela me falasse, tudo ouvi do seu olhar baço e triste. Como uma dor transforma o cotidiano de uma alma! A mulher alegre de antes parecia vencida, dada à morte, como se esta lhe fosse o maior alívio. Senti que havia chegado o fim da estrada. Retornei porque não precisava o tempo de que mais eu ali ficasse ainda para presenciar antecipadamente aquele resfolegar de vida.
Era tarde. Lembro-me muito bem daquela sexta-feira seca, daquele telefonema frio. Era minha irmã Hilda quem estava do outro lado da linha. Escutei-a atento às suas palavras reveladoras.
- Venha, mano, é hora de vir!
- E ela?
- Acho que apenas espera por você.
Falei com o meu comandante e recebi dele a alforria de que tanto necessitava: mandou que eu fosse e me esquecesse do tempo. E fui! Olhava pela janela do ônibus um horizonte buscador que saía de dentro de mim, como se salvas de flashbacks pipocassem para esconder a inutilidade da dor que nos chega com o sofrimento. As paragens que o meu olhar alcançava não estavam do lado de fora do ônibus, mas em meu âmago e era nele que eu via o comecinho de minha estrada, a viagem até a adolescência e o prumo que tentava erguer-se em mim com a chegada da vida adulta.
Eu não conseguia vaguear nos últimos dias, sem tê-la comigo bem próxima mesmo, ela e sua dor. A saudade ficava pisoteando a memória, e eu possuía um pé lá outro em Maceió. Os vértices dos olhos viviam ardidos do sal das lágrimas. Mas resolvi guardar os meus sonhos de criança e ir. Tinha que ser assim. Não havia qualquer colo que me levasse de uma forma carinhosa e alegre; o dela, que era meu, tremeluzia despedindo-se da vida; parte de mim morria também, desavisada que a orfandade não há apenas na alheia dor, mas, como acontece com os outros, ela nos visita também. Cheguei lá desanimado
- Mamãe?
- No hospital. Ela e papai.
Joguei minha bolsa sobre a cama e pedi a um primo que me conduzisse até lá. Fui apenas enxergando supostas curvas no horizonte sem querer enxergar o fim. Quando lá chegamos, silenciei minhas pisadas, cruzando o longo corredor da recepção até o apartamento onde ela estava. Entrei. Havia uma cama e sobre ela a morte respirando, puxando o corpo macérrimo de minha velha adorada. Aproximei-me do leito, ajoelhei-me para estar mais próximo de sua face e conduzi o meu olhar procurando o dela, tão difícil de achar...
- Mãe?
Demoraram-se alguns minutos para que o seu olhar se desviasse do teto e com a cabeça adinâmica, olhou-me com dificuldade. Tive que debruçar-me sobre o dela e fazer o meu achá-lo. Foi o olhar mais triste e pidonho que a vi fazer em toda a minha vida de filho. Ele não pôde dizer-me o que ela desejava; talvez doesse em sua alma.
- Mãe?
- Deus te abençoe, filho...
Quase inaudíveis, foram essas as suas últimas palavras. Beijei-a à testa e levantei-me; quando olhei atrás de mim, papai estava cabisbaixo. Abracei-o e o vi levantar o braço direito e apontar com o indicador para ela. A morte havia chegado; parecia apenas que esperava a minha presença para se consumar má e rude com o corpo de minha mãe, porque, a alma, essa se foi, mas deixou um perfume de paz e harmonia no quarto, preparando-nos para a sua longa e quase eterna fuga. Cobri-a com o lençol, e o resto ficou por conta do celular que trazia no bolso. Todos ficaram sabendo. Ali dei o plantão mais mórbido que o quartel de minha vida havia me permitido fazê-lo. Ouvi o marulhar das ondas do meu mar orfânico; a vida jamais me seria a mesma.Senti pela primeira vez a dor dos filhos desabitados do amor de mãe.
Afoguei a voz em múltiplos e pequenos choros. Os amigos e parentes mais próximos se achegaram para nos confortar. Tolos amigos! Faziam-no como se isso servisse para repatriar a dor dos nossos peitos; neles, ela lhes havia feito definitivo inquilinato; crudelíssima, ela deveria permanecer horizontalizada. Minha maior pátria havia morrido e a maior só sentiria quando depois, homem feito, procurasse, sem achar, o seu colo; aí sim, o quartel ser-me-ia um desabafo e as armas, um trunfo para me ensinar que a maior morte nós a construímos em nosso dia a dia ao fazermos o amor ir embora nesses pequenos atos imprestáveis, que a vida nos obriga a tecer.
E passaram-se os anos e eu passei a enxergar nas letras o novo caminho da vida e pude desorfanizar-me com os textos e ser filho e ser pai e ser tudo, nos doces vôos que a ficção me permite dar e fazer, como agora, com este conto.
Quando lhe fiz a última pergunta, quem me respondeu foi o seu silêncio, mas já me senti abençoado por suas palavras e pela confirmação que o seu olhar fez.
Quando quero tê-la próxima a mim, invoco-a às palavras da alma e chegam-me caudalosos rios de parágrafos e escrevo textos compridos e beijo-a à face, aperto a sua mão e sinto-me em seu colo, acariciado e feliz. Até a orfandade carece transitar dentro de nós por caminhos diferentes do que aqueles de antes, quando apenas a dor e as lágrimas sabiam encontrá-lo; há luz em toda a escuridão que procuramos com o amor da vida e os passos alegres da felicidade; um homem revive o belo ou o feio que evoca à memória e apega-se do lado de cá da imagem do espelho da vida; prefiro lembrar-me dela viva, alegre e bela, como se a orfandade tivesse vergonha de minha felicidade. O câncer é e será sempre o protótipo de minhas lembranças insuficientes e tristes. Mas a vida continua, Sargento e é por isso que estou aqui, contando catarticamente esta história, tão minha, tão do mundo.