Não fale essa língua!

- Odeio meu pai!

- Que absurdo! Como tens coragem de pronunciar essas palavras tão duras contra teu próprio pai?

- Ele não devia ter existido!

Fazia poucos dias que eu havia iniciado meu curso de francês com ele. E essa fora a nossa primeira conversa. Ele havia me dito que estava no Brasil há mais de trinta anos;disse-me que não conseguia mais pensar em francês e que rezava apenas em português, gesto esse que, segundo ele, o aproximou mais de Deus; o Deus dele era brasileiro e falava o português.

Demorei muito a desfazer-me da onda gélida que havia se apossado de mim, quando ouvir seu discurso sobre seu pai. Olhei-o de soslaio como se minhas retinas o fuzilassem acertadamente e certeiramente. Não podia compreender como tanta maldade poderia permanecer no coração daquele homem; pai é pai; mãe é mãe; o ser humano tem de ser manso e bom; o discurso de Francois era rude demais e desalmado, mas existia.

Ouvi dele que sua mãe era cearense; ainda jovem, seu pai a levara, do Brasil. Apaixonaram-se e casaram-se na França. A prole era de apenas um casal: ele e Izabelle. Ainda crianças foram morar em Barcelona onde concluíram o ensino básico. O velho era filho de espanhóis dessa região. Em casa falavam o francês e na rua, o espanhol. A ira nasceu por causa da proibição feita por ele a François de falar a língua da mãe das crianças.

- Você não pode falar o português nem em casa! Essa língua horrível! Punirei você, firmemente, se vê-lo a falar com sua mãe ou com a sua irmã! Esqueça essa língua troncha! Vai terminar por não falar o meu espanhol

Ele me disse que a palavra que ouvia de sua mãe e seu limpo português, eram catárticos e indispensáveis. Passou a falar com ela apenas às escondidas. Sua irmã aceitara totalmente e sem resistência, as ordens do pai. Nas horas que falava com a mãe, ele se sentia vingando-se do pai. O colo dela poderia ser traduzido apenas para o português.

- Cuidado com o seu pai, meu filho. Quando ele estiver em casa, fale apenas em francês.

- Em francês eu não consigo sentir seus carinhos, mãe. É como se bebesse água suja, salobra, imprestável.

- Ele poderá punir-lo com violência

- Eu sei..., mesmo assim... falarei com a senhora em minha língua!

- Sua língua..., a língua da sua mãe... que bonito , meu François..., que bonito!

Ele encheu os olhos de lágrimas e olhou para um certo horizonte longínquo que só seu coração podia alcançar. A vida registra as palavras de um olhar de forma tão densa que o coração não pode deixar de permanecer vendo e sentindo as suas imagens...

À mesa, segundo François, podia enxergar a rudeza crua do velho Michell. Ao seu redor falava um velho e teimoso fantasma, bem diferente da alma do homem que, raras vezes, aos domingos ensolarados da linda Barcelona, falava manso, distraía-se da maldade e criava asas.Esses instantes viviam apenas por um piscar de olhos. Ele não se amava como o sol da primavera ama as sensíveis pétalas de rosas e as deixa permanecerem belas, mesmo após a estação ir-se e o chão ser seu leito, indiferente de qualquer zelo; o verão não as destrói, mas apenas permite que o sol seja recebido e brilhe intensamente.

Ele me disse que sua mãe sofrera demais com as palavras que o velho lhe dirigia na constância de suas convivências. No dia do seu funeral, ele sentira-se livre e livre; não pôde sentir as lágrimas misturadas de sua mãe ferida. Elas traziam, nelas mesmas, a perversidade e a tentativa de ser doce que habitaram o peito indeciso do velho Michell.

- E por que sua mãe não se separou dele?

- Ela o amava muito, mas ao seu jeito...

- Sua irmã?

-Resignou-se ao sofrimento da ordem dele!

Ele teve que deixar a França e vir ao Brasil e tentar esquecer todo o passado trágico; desceu em São Paulo onde permaneceu por dez anos. No Nordeste, em Maceió, graduou-se em letras.O os anos cruzados do seu curso representavam doses terapêuticas de um palatável remédio para ele , o português.Sua mãe permanece visitando-o quase que anualmente.

Falar com ela em português é o renascer de tudo para ele. A língua flui sacrossantamente como se o fizesse esquecer o passado indesejado ou, quem sabe, dar-lhe vida nova, sensações suportáveis e bem próximas de um perdão!

- Jamais o perdoaria!

- François..., é seu pai...

- Independente disso, ele não prestou! Não devo perdoá-lo. Fiquei onze dias preso no subsolo de nossa casa em Barcelona, a pão e água e tendo apenas o direito de receber de sua mão diariamente, em espanhol, três áridas chibatadas no dorso. Já dormia chorando, um choro remorsivo com que eu procurava lembrá-lo e jamais esquecê-lo, memorizando-o com o meu tempo e um preenchedor português. Agora você deve entender melhor o porquê de eu amar tanto essa língua tão bela...

E sorrindo, ele me convidou para iniciarmos a aula. E eu jamais me esqueci de seu olhar marejado por um ódio difícil de entender-se e um amor ainda por chegar, que,por ser pouco desejado carecia cruzar os horizontes de uma perda custosa, difícil. Ele não repetiu o que havia dito no começo de nossa conversa: “eu odeio o meu pai!”. Mas eu pude relembrar a frase que os meus ouvidos não desejaram ouvir e fiquei a perguntar-me o porquê de guardar-se tanto ódio no coração. Afinal, sua carne havia vindo da carne do pai e a sua vida trazia parte da vida dele. Mas nem tudo é assim; outras vezes o assim é assado e o mundo pode então assistir às conversas diferentes. Ele, nesse dia, interrompeu a aula de francês com uma salva escandalosa de espirros que chegaram a assustar-me. Nele, até isso era diferente. Ele é um homem diferente, femininamente diferente.