Catarse de Uma Melancólica

O cãozinho estava deitado bem ali, na soleira da porta dos fundos. Seu pêlo me pareceu sujo, opaco... um tanto fosco, necessitando de um bom banho. Quando me percebeu, levantou os olhos tristes e através deles, deixando a íris brilhar, sorriu, como se quisesse me contar da sua vida pregressa, de todos os seus passos até então. Seu sorriso de cachorro afetou o meu espírito embotado naquela noite... iluminou-me.

Comparei minha vida à do cão. Como poderia eu estar me sentindo tão perdida? O bicho se achara. Devia ter caminhado léguas, ter bebido as águas mais impuras, pisado os asfaltos mais quentes, e ali estava ele. Valorizando o encontro que poderia sanar sua dor - uma dor canina que, de certo, não sabemos da profundidade. O bichinho se mostrou terno, destemido, humildemente cachorro diante da minha figura pávida. Um escroque eu... há dias enfurnada em um ambiente viciado, concentrando álcool no meu sangue, entregando meu corpo à inércia, meus ossos e músculos à estagnação, à ferrugem. E um medo alucinado tratando de enlouquecer-me... medo da vida, talvez.

Pior a mente. Os neurônios implorando por idéias, os olhos tentando captar imagens já esquecidas, a memória indigna - um cérebro Alzheimer!

E eu, no meu sentimento ridículo, percebendo tudo, vagando sem rumo pelas minhas próprias razões, internalizando emoções sufocantes, perdendo a mim mesma em segundos contínuos. Busquei profundamente motivos... e resolvi alimentar o cão.

O bichinho era tagarela. Arfava, movimentava-se em círculos, ficava sobre as duas patas traseiras, empinado, jogando seu peito para a frente. Preparei-lhe um bom prato - prato mesmo, pois eu não dispunha de cumbucas na ocasião - de bife de panela, arroz, e purê de batatas. Dispensei a salada de alface. Não se tratava de um cão-tartaruga, Gosh! Ele abocanhou a comida como se tivesse fome de mês. Observei sua ânsia, a naturalidade, enquanto ele abanava o rabo e comia ao mesmo tempo. Onde eu perdera a minha espontaneidade? Seria culpa do miserável? Daquele indecente que havia sugado todas as minhas forcas, a quem eu dedicara os meus quereres mais intensos durante oito e meio bons anos?

Uma sensação insípida me caiu na boca. Precisei beber uns goles de uísque e misturei ao guaraná a bebida dos melancólicos. Sem nada no estômago, pois até a comida mais requintada me pareceria intragável, o álcool me corroeu o esôfago. Para completar minha autoflagelação, traguei a fumaça da ponta de cigarro esquecida no cinzeiro há uns bons dias.

Levantei-me trôpega após um leve cochilo no sofá. Me sentia um estorvo até para o cachorro! Não me permitia sequer uma olhada no espelho... e senti vontade de ouvir Lupicínio. Ele seria o porta-voz das minhas lamentações, dos meus sentimentos de ruína, do caos em que havia se transformado a vida. O disco girava e cada palavra mais forte assassinava-me. Dava golpes de punhal, faca peixeira, canivete no meu corpo esgotado. As vísceras estavam expostas e isso era fato.

Algumas roupas dele ainda permaneciam enxovalhadas no armário. Ele saíra sem se preocupar muito com a despedida. Dizia não gostar, simplesmente, dos arroubos emocionais. Pareciam-lhe bregas, desarrazoados, improdutivos. E agora, exatamente agora, eu experimentava a vagabundagem do excesso de emoção. Dei a mão à palmatória. Meu coração me dominava, enquanto ele desfrutava da vida lá fora. Consegui me sentir um pouco do lado de fora de mim mesma. O cão descansava, estirado no assoalho. A noite chegou novamente e me levou para a cama. O calor era enorme e, desta vez, me despi, certa da manhã que brilharia no meu corpo nu ao amanhecer. Eu já não queria nenhuma seqüela do que acontecera nos últimos dias. A desordem dos meus sentimentos precisava ser um passado.

Coincidência ou não, o sol brilhou intenso. Teria a natureza atendido aos meus apelos? O Criador teria se comovido com a minha palidez? De repente, senti uma lambida na mão. Lá estava o meu companheiro, sentado à beira da cama, convidando-me a um passeio pelo mundo. Eu suava em bicas... pela fresta da janela, dava para perceber o quão verdadeiro era o sol lá fora. Me fiz o favor se sentir preguiça... não aquela que nos leva à prostração, mas a que nos faz esticar braços, pernas, espinha. Levantei-me melodiosamente, como se uma canção me chegasse aos ouvidos.

Uma canção clássica, talvez Shümman, Chopin... era romântica, bela a canção. Meu camaradinha me olhava com uma ansiedade toda peculiar. Pôs as patinhas nas minhas mãos - e dançamos, alegres, ao som da música.

Tomei banho, senti a água correr pelo corpo depois de uns três dias secos. E olhei a garrafa de bebida, já vazia, remetendo-me ao ócio da semana anterior. Garrafa maldita...

Percebi que havia umas boas frutas, ainda frescas, não perecidas, na fruteira. Goiabas de polpa vermelha, mangas, bananas-ouro. Na geladeira, generosas fatias de queijo de coalho e leite. Me dediquei a uma orgia alimentar! Completamente revitalizada, encontrei o cãozinho, que já tinha o nome de Duque, olhando com uma atenção especial a rua. Outros cachorros pareciam esperá-lo no portão. Duque me encarou, um tanto envergonhado, agradecido, devoto. Eu entendi imediatamente. Ele tinha uma grande família de cães vira-latas. Precisava partir. Eu lhe dei um beijo na testa, triste, mas consegui me manter forte diante da despedida inusitada.

Foi embora o Duque, seguiu seu rumo, sua matilha. Eu me enveredei pela vida depois do episódio: fechei a porta da casa, sai pelo mundo. Passei por cidades, reencontrei velhos amigos, amei intensamente outras vezes. A minha dor já não estava disfarçada - ela simplesmente não mais existia. A vida me absorveu definitivamente! Continuo fazendo parte da História... e agora tenho um cachorrinho chamado Maneco.

Adri Engelbart
Enviado por Adri Engelbart em 29/03/2008
Código do texto: T921491
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