Quintal de Ilusões
As tábuas, transformadas em parede, cercavam de harmonia os envelhecidos aposentos daquela moradia perdida em meio ao mato. O terraço de terra batida era o quintal das brincadeiras de um bando de crianças de pé no chão. Mesmo na chuva não saiam de lá, sem pensar no futuro, sem saber se teriam futuro. Estava longe demais, só daqui uns cem anos. Todas as luzes dos carros iluminavam as paredes à noite, mas o cheiro de querosene do lampião lembrava as velhas casas do interior. Nem parecia que estava fincada bem no meio da cidade, contrastando com coberturas de frente ao esgoto à céu aberto. Cada vez que passava ali por perto observava os pequenos correndo de um lado a outro sem destino certo. Se temos todos um destino, qual seria? Talvez façamos nós mesmos, talvez escrevamos nossa história. . .
As gargalhadas, ouvidas ao longe, não combinavam com o cenário. Mas quando crianças não atuamos, portanto não há cenários perfeitos. Estamos despidos de máscaras e mágoas. Os ressentimentos duram somente alguns segundos, parecem coisas sem importância. Toda simplicidade da vida reside numa brincadeira de criança. Suas incansáveis pernas parecem querer alcançar um mundo imaginário. Seus corpos parecem imunes ao frio, mas, muito sensíveis, não resistem à dor.
Ficava por horas observando o quicar da bola de um lado ao outro. Não via o tempo passar quando aquele círculo de borracha cheio de ar tornava-se o mundo de algumas pequeninas pessoas. Brigavam por ela, às vezes literalmente
Cada avião que passava despertava a atenção. Recebendo acenos efusivos ele passava incólume, sem dar muita atenção a ninguém. Via lá de cima formiguinhas correndo pra lá e pra cá sem destino certo.
Sentado, da calçada via a aquela casinha sem cor abrigando gente de muitos sonhos e pouca vida. Via gente sorrindo e pedindo de volta somente o sorriso. Brigando por um prato de comida.
O mato tremia com o vento trazendo o cheiro doce da chuva. Os pneus esmagavam o asfalto negro e quente em brasa. Os dias iam passando como o trem que seguia seu rumo sobre a ponte, marcando uma rotina insensata a cada badalar do sino. Todo aquele quintal era o pequeno mundo, que para os pequenos, era imenso, quase infinito. Ali brigavam, faziam as pazes, rolavam no chão, chutavam bola, brincavam, brigavam...
No princípio, para mim aquelas crianças não tinham rosto. Todas elas tinham as mesmas feições, as mesmas roupas rotas. Aqueles meninos não tinham voz. Todas as vozes gritavam em uníssono sons indecifráveis. Eram vozes pedindo ouvidos, pedindo ao menos atenção.
Toda aquela rotina virara minha própria rotina. Ao observá-las sentia-me integrante daquele mundo de risadas
As marcas daquelas histórias estavam sendo deixadas ali naquele chão. Naquela terra úmida e fétida carregada de feridas expostas a olho nu.
O cair da tarde tingia de cores primárias aquele barraco velho, remendado de fé. O cheiro de café fazia as tardes mais alegres e trazia o riso ao rosto da mãe envelhecida, amargurada, sofrida...
O colorido das roupas tremulava nos varais esticados, e o vento quente balançava a poeira no ar, silenciava as buzinas desesperadas.
Por várias vezes suspirei a dor daqueles meninos como se fora minha. Estive ali em frente em muitos dias. Dias de sol, dias de chuva...Mesmo assaltado pela amargura lá estive. Desesperado por não poder ajudar. Envergonhado por não querer ajudar. Mas passavam os dias e todos os dias são iguais. São a rotina do mesmo sol, as fases da mesma lua, as mesmas promessas, as mesmas decepções, os mesmos sorrisos. Em todos os dias que lá estive vi sonhos quebrarem-se, vi flores murcharem-se, vi histórias acabaram-se.
As noites eram tristonhas, ouvia-se somente o barulho dos grilos em meio ao mato do quintal. A luz amarela do lampião clareava as vozes que vibravam dentro das frestas das paredes. No meio do mato a solidão daquela casa dormia no medo da madrugada. Os sonhos pediam passagem e desfiavam suas contas de causos e histórias.
Tanta gente tinha ali e tão pouco se tinha. A indiferença de todos parecia não os afligir. Parecia até isolados num outro mundo, cheio de esperanças e de fé.
O muro, como meu encosto, fora por muito tempo meu parceiro espectador daquele espetáculo diário de felicidade.
Não me lembro bem dos motivos que me levaram a estacionar o corpo defronte àquela casa. Talvez num momento de angústia ou num daqueles dias em que estamos com a alma enferma.
Porém, via agora a fantasia da vida em cores magistrais. O sorriso gratuito num gesto simples e honesto. Todo o resto perdera a cor. Nesse quadro via só as luzes claras acenderem-se num brilho ofuscante. Era a mágica do cotidiano dobrando-se em reverência à majestade da miséria.
Ali ninguém chorava a dor, muito menos o esquecimento, o descaso. Riam-se muito e de tudo. Aborreciam-se com os olhares piedosos e os pensamentos que os pré-julgavam.
Abstraí-me de pensamentos ruidosos e deitei os olhos sobre aquelas crianças. Como se não houvesse nada mais no mundo transformei aquele quintal em minha diversão favorita. Era meu entretenimento diário, fazendo-me rir, fazendo-me chorar. Criei cada história, cada personagem, cada cenário...
Tinha a menina de tranças, a quem eu chamava de Bia. Era sorridente, mas muito autoritária. Tinha uns sete anos e odiava ser contrariada. Chorava sempre pelos outros meninos fazerem troça dela. Seus olhos amendoados cintilavam o brilho da manhã. Passava horas manipulando suas bonecas simulando conversações, criando mundos imaginários. Preferia brincar sozinha, longe dos outros meninos. Empertigada, desfilava seus cachos pelo quintal com um certo ar de autoridade. Certa vez tive a impressão de percebê-la devolver-me um sorriso num rápido gesto. Senti disparar o coração, não queria ser notado. Esquivei-me por detrás do muro, observando-a por uma pequena fresta entre os tijolos. Não mais a vi mirar-me. Talvez tenha sido uma mera impressão, talvez uma ilusão...
Imaginava quais seriam seus sonhos de menina. Talvez nem tivesse idéia dos horrores da vida ou dos temores dos homens. Seus movimentos delicados desfilavam no ar um bailado simplório e cheio de minúcias. Pisava com frescor a rijeza do chão sujo e empoeirado.
Enquanto a bola corria de um lado a outro ela continuava ali sentada imersa no seu mundo, quase perdendo a noção de tempo.
Toda minha piedade por aquelas crianças prendia meus olhos toda tarde, durante horas. E numa dessas tardes chuvosas, cinzentas, quase sem vida, vi a bola das crianças pulando em minha direção. Vinha calmamente, sem pressa. Vi o tempo paralisar, as gotas da chuva mansamente molharem o asfalto e os carros rodarem parecendo querer parar.
Fiquei algum tempo ali imóvel, criando coragem para devolvê-la aos meninos. Minhas pernas pesaram. Pensei no sorriso de Bia e a vi caminhando em minha direção para apanhar a bola.
Seu sorriso era farto, cheio de candura. Seus cachos balançavam e vi seu corpo flutuando pisando leve no chão molhado. Incauta, correu na aspereza do asfalto esburacado.
O barulho me tirou do transe e jogou-me novamente na parede da realidade.
Vi o céu chorar sobre o pequenino corpo enrubescido de dor, sorrindo um riso de criança.