Dèjá Vu

Sinto que minha história se transformou em ruínas, meu passado agora está sendo engolido pelas trágicas lembranças. Lembro-me do dia que dei meu primeiro beijo. Ricardo morava em frente de casa. Sua janela revelava seus segredos e a cada dia que passava minha vida se unia com a dele. Vejo agora a porta ser derrubada bruscamente pelo resto de concreto que veio deslizando sobre as velhas paredes que sustentam minha solidão. Ricardo fingia ignorar o nosso amor, arranjava sempre uma maneira de esconder a face de seu coração. A cortina fechada gritava por dias afinco. Um forte estrondo consumou o fim do meu mundo particular.

Na gasta esquina vejo avançar uma carruagem de corvos frenéticos a procura de restos mortais seguindo com suas parafernálias eletrônicas. Desci as escadas e fui até a janela. Amassei um impresso, e lancei no alvo. Durante alguns minutos fiquei estática. Ricardo abriu sua vida e me fez um sinal de espera. O impresso parou em minha mão. Quando ouvi o fragor, sai buscando somente proteger-me do apocalipse que me sobreviera. Larguei pertences e minha genealogia para trás procurando me esconder sobre o manto da minha alma. O impresso bateu sobre meu vestido azul, inclinei e apanhei o bilhete. Desfiz as dobras e toquei os olhos. Pedia para me encontrar com ele. Retirei-me de frente a cortina vermelha.

Um milico sufocou-me o ar ao me conduzir até o veículo oficial. Tentei impedir, dizendo que esperasse um momento até consumar o funeral de minhas lembranças.

Ele afastou e abaixou a cabeça. Mamãe acabava de abrir a porta, dizia que o Ricardo estava na sala. Ele estava com um terninho azul escuro, cabelo penteado e com as mãos juntas. Disse-me com uma voz tremida se queria sair com ele. Pedi a mamãe, mas ela se recusou alegando eu ser muito moça para relacionar com garotos. Ricardo sai cabisbaixo procurando uma solução. Perguntas se chocavam em minha mente. Quiçá beijar? Nunca daria meu primeiro beijo.

O alicerce estava a ruir, rachaduras surgiam de toda parte. Dava para ouvir de onde estávamos os retratos antigos caírem e estilhaçarem. Estou pagando o preço da modernidade. A natureza respondeu a agressão. Olhava em volta na rua e observava meus antigos vizinhos chorarem desesperados. Passou muitos anos até eu poder falar novamente com Ricardo. Começamos a namorar, demos nosso primeiro beijo na antiga praça, onde hoje se tornou um condomínio de prédios. Estava com um vestido rosa, Ricardo com uma blusa de marinheiro. Nossas mãos se encontraram e os lábios se uniram em uma só boca. Estremeci. Foi um dos melhores momentos da minha vida. Neste exato dia mamãe deu uma parada cardíaca e veio a óbito. Lembro-me do desespero de papai e de minhas tias. Os velhos discos dos Beatles, Tom Jobim e Sinatra jaziam na sepultura da minha velha casa.

Como um relâmpago a estrutura veio abaixo, não resisti. Chorei. O que seria de minha vida agora? Ao menos se tivesse a companhia de Ricardo. Viúva. Sozinha. O milico de nome Fernando me dirigiu até o carro. Ao me aproximar olhei para trás, no lugar da minha casa estava agora um amontoado de entulho. Uma última lágrima desceu sobre minha gasta face.

Vejo pela janela do táxi um imenso arranha-céu. Subindo suas ardentes escadas penso o que será da minha história. Meu endereço a partir de agora é quarto 118, espero que o estado não me esqueça e que minhas lembranças não me torturem mais.