Noite no Furgão

Tantas noites se passam sem que realmente sintamos isso. Sentado na mesa do bar, solitário, ao léu, ele observa. Apenas observa. A vida passando a sua frente, com saias negras ou com calças de couro e correntes de falsa prata pendurada na cintura ou no espaço para o cinto. Tanto faz onde ficam os adornos que tanto seduzem os olhos do ébrio homem de vinte e poucos, não tantos, anos.

Um ou outro transeunte retribui seu olhar, para receber um cumprimento com um copo levantado e um sorriso torto de canto de boca. Prazer em te conhecer perfeito estranho. Assim ele se expressa em pensamento, jurando ter dito algo.

Uma, duas, três da madrugada e ele ainda bebe, se embebeda. Voa pelo espaço infinito da noite que se estende bem debaixo de seus pés como um chão falso que a qualquer momento pode desabar. Mas porque bebe tanto? Não lembra exatamente. Rodrigo não lembra muito bem de nada, desde que se perdeu para o primeiro litro de cachaça, depois do segundo tumor no fígado e depois da notícia que não ia durar nem três meses de vida.

Agora ele espera pacientemente que esse dia chegue, mas já fazem oito meses desde a notícia fatídica e ainda não morreu, não cruzou a fronteira que vem esperando com tanto afinco, até está ajudando a amiga morte, mas ela tarde em vir. Parece até judiar dele, desse mísero humano como todos os outros que tem seus problemas e procura a melhor solução para eles. Parece que essa foi a melhor, mas não a mais rápida e menos indolor, que o digam as dores de cabeça durante a ressaca.

Quatro e meia da madrugada, ela não veio de novo. Como se houvesse uma hora para tanto. Garçom, a conta por favor. Trinta segundos para completar essa frase simples. Bebida demais deixa a língua pesada, parece até que colocam chumbo no álcool! Ri consigo mesmo. Riso lento, pesado, triste e sem graça. Trinta e oito reais e sessenta e cinco centavos. Tudo bem, tudo ótimo!

Tira o dinheiro da carteira, coloca em cima da mesa, mal contado, mal distribuído e mal organizado, mas está tudo certinho lá em cima do plástico vermelho do bar. Obrigado por mais essa noite Pai. Pensa em tom alto.

Cambaleia em direção ao ponto de ônibus, talvez leve uns vinte minutos pra chegar lá, talvez leve cinco, depende de quantas vezes vai cair ou parar pra vomitar. Sempre é incerta a questão do tempo, parece que ele tem ritmo próprio, ineficaz diante do que realmente importa. Uma lágrima cai quando lembra de eficácia, ela cai como caíram seus cabelos durante a quimioterapia ou como ele caiu diversas vezes por causa de bebida e cigarro misturados. Efeito mais forte do que a bebida pura.

Rodrigo mais uma vez esquece de olhar para o lado ao atravessar a rua, quase foi atropelado de novo, se não fosse uma mão misteriosa que o segurou antes do carro acertá-lo com a vontade e o mau humor do motorista. Olha para o lado um pouco preocupado, pode ser um assaltante. Que idéia mais troncha, que assaltante preservaria a vida de alguém que fosse assaltar? Ri de novo da bebida já tê-lo deixado no grau mais perfeito de um círculo eqüilátero! Isso existe? Anos de matemática em sala de aula as vezes o confundiam terrivelmente.

Obrigado! Disse para a mulher ruiva ao seu lado. Você não sabe como eu sou grato. Disse tentando aplicar um pouco de ironia à voz, mas tudo o que conseguiu foi demorar mais para falar. Entendo você, mas não tem problema, fica me devendo essa, e cuidado com os assaltantes amigo! Soltou o braço dele e foi embora andando na frente, com os passos corretamente distantes entre si.

Ele achou incrível a forma como ela conseguia andar tão perfeitamente e ele não. Parecia até mágica que algo assim fosse possível. Mas não tem problema nenhum certo Pai? Eu poso andar assim na primeira hora do dia, não poso? Depois disso nada é garantido, nem o apoio da família nem da escola onde ensinou durante cinco anos, nada disso é garantido para quem deixa o vício dominar de forma brutal e eficaz. Eficiência. Nome do mundo moderno, nome da máquina que rege. Rei! Somos REIS! Gritou em alto e bom tom no silêncio da madrugada, nas redondezas do bar.

Você de novo? Disse a mulher com um sorriso amarelado entre a fumaça do cigarro e o frio da noite. Pensei que iria para o outro lado, por isso não te trouxe comigo.

Ele olhou com uma cara de dúvida. Conheço essa mulher ou não? Conheço sim, foi a que segurou o meu braço, foi ela mesma. Eu ppeee...ee..gggoog..ogo ôôô..nniiii..bbuussssssss a..qui tammm..bémmm. disse com coerência incrível. Piada, riu de si mesmo, estava se escutando como estava falando. Nunca soube de um bêbado que conseguisse, era o primeiro.

Você vai pra casa de que horas? Agora mesmo ou vai esperar amanhecer? Perguntou interessada a mulher.

Aassssssiiimmm que passssaaarr o ôooôoôoo..niibussss. encostou-se na coluna que sustenta a placa com o sinal de que ali é um ponto de ônibus.

Creio que você não vá conseguir sair daqui tão cedo então. Soltou outra baforada, dessa vez nublando a visão de Rodrigo, cobrindo tudo o que podia ser visto. Ele não consegui mais discernir nada, nem entendia muito bem porque ela tinha dito aquilo.

Levantou a cabeça e viu o céu, e viu a lua bonita lá em cima, sorria tão bem iluminada, parecia até um sol. É isso, é um sol, não é uma lua não. Mas porque o céu tá tão escuro e a lua é um sol?

Pai?