Ponto de equilíbrio

Chico Bezerra puxou um tamborete, sentou e cruzou as pernas, como de hábito, olhou para o nascente no momento em que a lua vinha saindo e disse: “Os homens se vão, mas ficam as lembranças.” Isso foi surpresa pra todo mundo que estava na Bodega da Dona Graça àquela hora da noite. Não por Chico falar de lembranças, ele até que era um saudosista; só não era de filosofar. Gostava de falar do passado, dos tempos em que dançava pelos bailes da vida, das mulheres que fizeram parte de sua história, enfim, naquele lugar não se tinha muito do que se falar do presente – além do mais, o passado sempre foi um excelente recurso pra se contar boas histórias: o velho baú do tempo.

— Deixa de conversa fiada, Chico! – gritou da ponta da calçada o Genival, enquanto entornava mais uma dose de cachaça com Coca-Cola – tu tá mesmo é com saudade dela.

— Não, Genival – falou Chico pausadamente, sem pressa, enquanto remexia a memória em busca de uma resposta convincente – tou falando uma verdade. Todo mundo foi embora, só ficou nós: eu, tu e o Raílson. Nós nunca saímos daqui. Quer dizer, eu ainda saí, mas voltei. Foi embora o João Félix, o Evandro, o Toinho e muitos outros, mas nós ficamos. Assim como falamos deles agora, falamos de tudo que se passa na vida. A vida é feita de homens, que fazem histórias, que fazem a vida. Por isso tou falando isso.

Do pé do balcão, Raílson interferiu:

— O que tu quer dizer com isso, Chico? Tu não é de falar essas coisas! Tu deve tá com uma coisa guardada neste teu peito e não quer contar. Toma mais uma e desabafa logo! Se for coisa de mulher a gente entende, né, Genival!

Genival assentiu com a cabeça, ia dizer alguma coisa, mas sentiu que algo mais profundo se passava pela cabeça do velho e experiente amigo. Ele sabia que quando Chico falava sério sempre saia algo interessante, portanto ajeitou-se na velha cadeira e esperou atencioso e respeitosamente que aquele homem, que muitas coisas já vivera, falasse o que queria falar.

Chico olhou para os dois garotos e viajou no tempo. É, ele também fora garoto, e, se naquela época tivesse ouvido a frase que acabara de pronunciar, “Os homens se vão, mas ficam as lembranças”, provavelmente também não compreenderia. Há coisas que só quem já viveu, compreende. O tempo, implacável com todos, agora também estava sendo com ele. A juventude que não voltava mais, a força de seus 20 anos que há muito se fora. Ah, se tivesse seus 20 anos com a cabeça que tem hoje! A vida teria sido bem melhor, ou talvez não. Ou se tivesse hoje a força de seus 20 anos... a vida seria bem melhor... ou talvez não. Mas a vida é assim mesmo. A imperfeição do homem está aí: à juventude falta sabedoria; e à sabedoria falta juventude. Mas é assim que deve ser a vida. Se pudessem unir as duas coisas os homens tentariam superar Deus. O mundo perderia a graça, o prazer pelas coisas conquistadas, o respeito pelos outros homens, o seu ponto de equilíbrio. Em tudo tem de haver um ponto de equilíbrio; é assim na família, entre o marido e a esposa; no tempo, pois existem o dia e a noite, o calor e o frio, o sol e a lua.

Chico viu naquela sala, entre ele e aquele dois garotos o ponto de equilíbrio: a juventude e a experiência, as duas coisas se completando. Aquela sala não seria a mesma se estivessem ali só os dois rapazes, ou se estivesse apenas ele. O novo e o velho têm de se misturar, se unir, trocar forças e experiências e dar continuidade à vida. As pessoas se completam, necessitam uma da outra, dessa troca. Todos têm algo a ensinar, a aprender... e os homens se completam.

Poeta do Riacho
Enviado por Poeta do Riacho em 25/03/2008
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