As Artes na Formação do Homem
Tudo a ver
As crianças ainda não nasciam sabendo - como as de hoje - quando fui levado ao cinema. Não lembro quantos anos tinha. Mas não era mais de dez. Meninos travessos que passavam o dia correndo atrás duma bola de molambo, andavam comportados, encantados com a promessa de que seriam levados ao cinema, caso se comportassem bem, estudassem mais...
Depois de longo tempo fechado, passara por reforma e fora reaberto. Chegava, finalmente, o grande momento.
Naquela noite não houve aglomeração de vizinhos - nas portas e janelas das casas que tinham televisão – a se emocionarem com a novela em branco e preto.
De longe já se via a diferença: forte iluminação, a calçada cheia de enormes retratos de artistas estrangeiros, pipoqueiros, vendedores de picolés e bem na entrada, uma banca que trocava e vendia gibis – um luxo!
Entrei, enfim. Uma infinidade de cadeiras, grandes ventiladores espalhavam o ar seco, um palco entapetado escarlate e mais à frente, a imensa tela branca, onde estourou o facho de luz, desenhando imagens estonteantes, cenas vivas, inesquecíveis ainda que eu viva cem anos.
Como tirar da lembrança aquele ancião corcunda que ao ser contrariado pelo Faraó, jogou o cajado e este a transformar-se, alí, diante dos meus olhos, em assustadora serpente venenosa? E as águas azuis do mar vermelho que se partiam sob a ordem de Moisés a dar passagem aos israelitas? Extasiado, eternamente marcado pela grandiosidade da magia do cinema, a maquina de fazer sonhos.
Enquanto construía esse texto, parei para conversar com Jefferson, 13 anos, estudante da Líria, irmão de Wesley, 8 anos. Na rua passava um carro-de-som anunciando a presença de um circo na cidade. Perguntei se gostava de circo. Timidamente respondeu que não sabia, pois, nunca tinha ido. Dei-me a supor suas emoções ao deparar-se com o globo da morte, feras indomáveis domadas, engolidores de fogo, equilibristas...
Surge, inevitavelmente, a questão: como se constrói a alma, a identidade do individuo? Por quais caminhos passam as minúcias da aprendizagem que solidificam a cidadania, a personalidade e lembranças? Estou certo de que é de grão em grão (bons e saudáveis) e através destes que se edifica o bom caráter do cidadão vida afora.
O cinema, o teatro, o circo e a literatura andam juntos, de mãos dadas, ao longo do tempo, na missão de melhorar o ser humano; melhorá-lo para si mesmo, melhorar o meio e, consequentemente, o próximo.
E nisso não há nenhum resquício filosófico, religioso, humanitário... Trata-se apenas da aceitação de que somos iguais e compartilhamos os mesmos sonhos, as mesmas necessidades, como se a vida estivesse limitada à grande tela de luz. E fosse tudo capaz, até a recuperação da natureza!
E chega de desconstrução porque quero dar outro foco à crônica. Como meu amiguinho desconhece o circo e foi uma vez ao cinema, ocorreu-me que minha citação (a criança atual já nasce sabendo) pode estar completamente errada apesar de ser comum ouvi-la. Estaríamos - especialmente nós adultos educadores naturais - confundindo ‘mais informação’ com ‘maturidade’?
Não sou especialista em comportamento humano. Mas estou convicto de que se trata de situações distintas. Uma criança bem informada não é um adulto tolo, tampouco um adulto de pouco saber é uma criança esperta. Pensemos nisso para que não atrapalhemos a boa formação das futuras gerações.
Criança é sempre criança e precisa ter acesso ao lúdico, à magia, ao sonho, à literatura – tudo adequado à sua inocência para que cresça forte, livre, feliz... Afinal, se bem alimentada for, terá existência tão prazerosa quanto à magia do cinema, teatro, circo, livros... Vá ao Cine, ao teatro, ao circo, a livraria!