Apenas mais um caso de dengue - giselle sato

O médico, paciente como se falasse a uma criança, engana-me afirmando que permanecerei aqui mais uma semana e terei alta. Recebo as “boas novas” com descaso.

Sei que viverei pouco, mas o medo da morte, já não assombra. Olho o vizinho jogado no leito sujo e parece-me que está mais morte que vivo. 

Hospital Público, dengue, a epidemia oculta, o povo não se deu conta da gravidade da situação. Ouvi dizer que a dengue existe no Rio de Janeiro desde 1923. Que foi erradicada e retornou com força total nos anos 80. Escuto as enfermeiras discutindo com os médicos que a situação está fora de controle, são mais de 400 pessoas atendidas por dia no hospital.

Silêncio. Estão fracos demais para gemer, somos vinte pacientes amontoados na enfermaria quente, abafada, as paredes estão descascadas e há sinais de infiltração.

Temos febre alta e dores fortes e a morte ronda diariamente fazendo vítimas.
Os enfermeiros chegam com medicamentos, furam-me o braço, uma agulha procura lentamente a veia. Exames de sangue diários controlam os níveis de plaquetas e outras coisas que não entendo.

Hora da visita. Não recebo ninguém, olhares curiosos vasculham a minha magreza. Durmo uns minutos, acordo, ainda há estranhos me encarando, adormeço novamente.

Puxo o lençol fino para o queixo, o frio não passa. Um frio constante.
A enfermeira troca o soro, parece cansada e aborrecida.
Convenço-me afinal de que sou mais um fardo, ocupando uma cama enquanto dezenas aguardam nas macas pelos corredores. Esperam uma vaga. Estão desesperados.

O suor corre-me no corpo todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Cerro os olhos, digo a mim mesmo que as coisas vão melhorar, bocejo cansado demais, penso na última vez que vi meus pais.

Eram tão pobres, a terra seca, miséria e fome na Paraíba. Tantos anos e a lembrança daqueles rostos castigados e sofridos, olhos vazios de esperança.

A vista escurece. Alguém chama as enfermeiras:_ acode que o velho está morrendo.
É tarde. O cheiro de éter e suor misturam-se. Os doentes, o médico plantonista, os residentes, a enfermeira cansada, macas e leitos. Tudo se confunde.

Estou deixando as dores e tristezas. Deslizando no silêncio reconfortante, o jardim do hospital ao longe, a estação de trem, ambulâncias e doentes... tudo é uma imensa tela borrada. O céu escuro, a noite quente de verão. Distante.


Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 22/03/2008
Reeditado em 22/04/2008
Código do texto: T912267
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