Terra seca

As rodas do caminhão fizeram subir aquele pó vermelho da terra seca e sem vida. Ouvia-se o ronco do motor preenchendo o silêncio de mais um dia de sol ardente. Toda a tristeza do mandacaru foi coberta de poeira. O néctar do chão do sertão ficava sob os pés de Severino. Pisava passos decididos em direção ao sustento. Deixava lá trás toda sorte de dor, fome e miséria. Era agora filho do mundo. Um filho pródigo que buscava abrigo, que orava por proteção e alento. Tanta estrada ficava para trás e suas mãos calejadas arrastavam seu orgulho para a grande cidade. Ela o estaria aguardando de braços abertos. Pronta a afagar-lhe o rosto e dizer-lhe versos de consolo. Levava o peito cheio de incertezas das quais não conseguira esquivar-se nem por um instante. Aquele sertão carcomido ceifara-lhe o resto de amor e afeto. Trazia nos vincos do rosto as marcas de uma vida sofrida e cheia de dor. Suas crias choraram ao vê-lo partir. Mas tão logo se fora e puseram-se novamente a brincar, na certeza de que seu pai regressaria trazendo novas cores para aquelas vidas acinzentadas. Um fio de esperança conduzia os novos de passos de Severino. Esperança de reconstruir o que fora pelo destino destruído. O brilho das luzes da cidade fez acender-lhe os olhos permitindo um colorido que há muito não se via. Tão logo pisara aquele chão de concreto e seu espanto foi tamanho que viu-se envolvido numa vertigem. Os altos edifícios pareciam querer devorá-lo. Como poucas vezes em sua vida sentiu medo. Sua vontade era de voltar para sua terra. Voltar para perto de sua gente. Mas fizera um juramento. Seu escapulário fora testemunha de sua oração. Pediu dias melhores para os seus e que a nova empreitada lhe trouxesse sorte. Vagou a ermo por horas, construindo uma morada perfeita, cheia de novidades, pisando o novo chão. Ali edificaria uma vida de conquistas. Aquele chão que agora rebatia a garoa fria seria o norte de seu futuro. Aquelas gotas do céu molhavam-lhe a face, refrescando seu corpo febril e carente de esperança. A água que caía seria o alimento para seu corpo, seria a água para sua sede. Principiou sua estada na árdua labuta, construindo lares para tantos sonhos. Cada tijolo que assentava floresciam suas incertezas e suas angústias. Realizava sonhos de outrem enquanto os seus estavam trancados numa caixa que somente ele possuía as chaves. Por vezes os deixava escapar, mas nunca os havia conseguido capturar de volta. Cada sonho que fugia era um degrau da escada do destino que era quebrado. Apoiava-se no corrimão firmemente para não cambalear. Tentava subir com esforço. O cimento que Severino carregava virava alimento para seu corpo e para sua alma. Eram árduos os seus dias, porém na grande cidade havia cores em seus olhos. O desejo lhe era o fiel amigo à noite no quarto escuro, enquanto recordava o sol do sertão. A saudade explodia quando o sol caia. A noite chegava escura e silenciosa jogando-o nos braços da solidão. Como tantos outros vindos de sua terra Severino ansiava por comida. Ao raiar do dia seu corpo tratava de jogar-lhe na cara a dura realidade de seus sonhos. Era acordado e mirava a batalha na busca por pão. Na terra que deixara para trás havia seus pequenos que contavam as horas para ver novamente o rosto sofrido do pai. Apertar-lhe as mãos calejadas, sentir teu cheiro de suor do campo.

Sol após sol Severino percebia a escassez de recursos. Rareavam-lhe os cabelos, assim como a sobra no fim de mês. As remessas reduziram-se a quase nada, e o nada é o que tornara-se sua vida. Um vazio cheio de nada. Só a solidão abraçava-lhe toda noite. Fora embora seu largo sorriso. Em seu lugar um rosto sulcado pela decepção, envolvido na individualidade da multidão. Era sozinho naquele mar de gente. Navegava naquele labirinto de corpos confusos desviando-se do choque. Seu destino tornava-se sinuoso à medida que andava. Dia após dia a ilusão de vida nova tornava-se pó. ''Tudo o que era sólido desmanchava-se no ar''. Aquele ar cinza, fatigado, envolvia-lhe os pulmões de uma maneira sufocante. Os novos costumes amedrontavam-no. Severino via-se de mãos atadas diante de uma grave situação. As cartas recebidas traziam as marcas amarelecidas da miséria. Relia aquelas linhas vezes seguidas e irrompia num pranto convulsivo. Seu grito de dor ecoava noite afora, acordando mães e filhos. As mil personagens que encenamos todos os dias tomaram de assalto a alma inerte de Severino. Seu objetivo deixara de ser o ''futuro melhor''. Agora a luta era pelo prato dia. Pelo saciamento da dor. O amor próprio se fora e deixara um homem entristecido, enfurecido pelo esquecimento. Nem mesmo suas orações o acalentavam mais. No fundo sua alma perdera a fé. Seu Deus mais uma vez o abandonara.

Severino fez das duras ruas de concreto o chão de sua nova casa. E do céu pintado de estrelas o teto de sua solidão. Aturdido, passou noites insones a contemplar o céu escuro sorrindo-lhe ironicamente a sua desgraça. O orgulho o isolou num mundo solitário e o impediu de enviar notícias à sua terra seca. Pisoteado por um mar de gente sem rosto sentia-se um grão de areia num universo de melancolia. Faltava-lhe o labor, sobrava-lhe o tempo; o tempo ocioso a vagar por sua mente, envolvendo-o num torvelinho de más idéias.

Numa fria noite de inverno, fez o balanço de sua vida. Seus amores, seus temores, dissabores, tudo o que até ali o havia levado rio abaixo rumo a um oceano descoberto. Na penumbra da noite viu o espectro de seu fracasso encostar-lhe uma navalha na garganta. Hesitou por horas, passando a limpo cada passo de seu caminho, cada cruzamento fechado, cada porta trancada, cada janela escura, cada canto vazio. No frio ardente da noite fria de agosto, sentiu o gosto quente de seu sangue molhar-lhe boca. Molhar-lhe o peito, encharcar-lhe a roupa.

Valter Pereira
Enviado por Valter Pereira em 20/03/2008
Código do texto: T909690
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