A Vida em um Minuto
Gustavo amanhecera especialmente feliz. Enquanto dirigia para o trabalho, observava a manhã radiante de primavera, os ipês colorindo todo o caminho, o piso abaixo deles transformado num tapete extravagante das flores derrubadas pela chuva da madrugada. A paisagem exuberante e o trânsito não o impediam de repassar alguns pontos que teria que defender na importante reunião marcada para o início da tarde. Estava tão concentrado nisso, que se assustou com o toque do celular. Conferiu o visor e, ao deparar-se com o número do celular de Beatriz, sua única filha, abriu o flip:
- Sim, meu amor – respondeu alegre, para, em seguida, balbuciar confuso e ansioso, a cada informação fornecida por seu interlocutor:
- Oh! Desculpe-me. Sim, sou eu... Sim, filho... Sim, diga-me... A Beatriz? Oh! Meu Deus!... Em qual hospital, por favor?... eu... sim... certo... e, como é que ela está?... Sim... Eu sei... certo, certo... Sim, claro, estou indo praí. Muito obrigado...
Desligou o telefone ofegante, o peito doendo, apertado, o suor escorrendo pela testa. Sua filha, sua única filhinha. Uma menina ainda, vinte e três anos recém completados e... Uma enorme angústia, além da terrível pressão no peito, impedindo-o de respirar direito. Encostou o carro por uns segundos, precisava coordenar os pensamentos. Ligou para o trabalho e pediu à secretária que desmarcasse a reunião. Ainda arfava, quando retomou a direção do carro e seguiu o que lhe pareceu o melhor trajeto até o hospital, não muito longe dali.
Estacionou o carro e, ao tentar desembarcar, sentiu as pernas pesadas, doloridas. Pensou, irritado: Gustavo, Gustavo! Isso não é hora de ter um piripaque! E, comandando com energia o que lhe restava de suas forças, levantou-se, trancando o carro com um bip e caminhando rapidamente para a recepção do hospital. Antes que pudesse dirigir-se a uma das recepcionistas, Adélia, mãe de Beatriz, lançou-se em seus braços, exclamando:
- Gustavo! Graças a Deus!
Seguiu-a até o saguão do Centro Cirúrgico e, em seguida, desvencilhou-se dela com carinho. Separados há mais de dez anos, nutria pela ex-esposa uma grande amizade, mas precisava de detalhes, precisava ver Beatriz, conversar com alguém da equipe médica. Foi quando uma porta se abriu e, numa maca, cercada por enfermeiros e médicos apressados, pode vê-la deitada, o rosto crispado pela dor, as mãozinhas pequenas apertando com força as laterais do colchão. Ao ver os pais, ela até tentou sorrir, mas suas feições denunciaram seu completo desespero e ele, por pouco, não se lançou atrás dela rumo ao centro cirúrgico. Ao vê-la desaparecer novamente atrás das portas de vidro leitoso, sentiu-se tomado pelo desconforto de há instantes e, para não correr o risco de um desmaio, recostou-se a uma parede. Sentia-se derreter por dentro. Havia outras pessoas no saguão. Algumas lhe dirigiam a palavra, mas ele já não as reconhecia ou compreendia. Estava longe, o pensamento vagando nas lembranças de Bia. Sabia que, no momento da morte, toda a vida do sujeito é repassada em átimos de segundos. Não estava bem certo se estava morrendo, mas, estranhamente, não era toda a sua vida que estava passando como num filme, então, mas a vida de Bia. Sua vida, com Bia.
Bia, sua linda garotinha de dois ou três anos, que se ajoelhava em seu colo para escovar os cabelos muito finos e dourados em sua barba por fazer. Sua insistência em aprender a dar o nó em sua gravata. Ás vezes, era obrigado a sair de casa com o nó meio torto, para não magoá-la. Ou de como ela ficava, em pé sobre a cama, postada atrás dele para escovar-lhe os cabelos, que na época eram fartos e negros. Instintivamente, alisou a, agora, reluzente careca, com um braço pesado e dolorido, que nem parecia ser o seu. Sorriu. Ou pensa ter sorrido, quase um esgar, já que o rosto assim como todo o restante do corpo, parecia não mais lhe obedecer aos comandos.
Gustavo buscava na memória cada momento de alegria, cada pequeno aprendizado com aquela criança fantástica, sua querida Bia. Os bichos de estimação, do mais prosaico cãozinho vira-latas, até uma majestosa e antipática coruja, passando pelos inesperados insetos e uma cobra sem escamas, que mais se assemelhava a uma enorme minhoca verde. Os brinquedos, comprados ou inventados, com que ela consumia seu tempo. Por anos, ela ninou, amamentou e tratou como filha a uma velha almofada, amarrada num cobertorzinho puído de bebê.
Lembrou-se de outros episódios, o modo como ela defendia os porquês de sua preferência por um determinado programa de TV, enquanto ele, apenas para vê-la irritada, preferia outro. E, depois, para provocá-la mais ainda, no meio do programa abria o jornal ou uma revista, demonstrando total desinteresse pela televisão.
A puberdade chegando, quando ele a chamava de gasguita pois a voz dela sempre falhava nos momentos em que ela mais precisava. Estudiosa, seu desempenho sempre o deixava orgulhoso. Precoce, ela prestou vestibular aos dezesseis anos e era a mais jovem de sua turma de formatura, aos dezenove. Lembrou-se da alegria dela ao lhe mostrar seu primeiro carrinho, adquirido com o salário de estagiária.
Já saiu da faculdade empregada. Lembrou-se do chefe que a assediava. Quis ir lá quebrar a cara do sujeito, mas ela, inteligente, o convenceu a esperar, enquanto gravava uma das investidas do picareta e apresentava à chefia dele, provocando sua demissão. Houve outros eventos semelhantes, já que Beatriz havia mesmo se tornado uma mulher exuberante e muito atraente, mas ela sempre soube lidar com eles com uma maturidade que ele jamais pudera esperar.
Os namorados também desfilavam agora em sua cabeça. Não foram tantos, mas era cada um mais esquisito que o outro. Um deles, ele acredita, jamais lavou o cabelo em toda a sua vida, enrolados numa espécie de trança rastafári de quase 80 centímetros de comprimento. Outro tinha brincos e piercings em locais inimagináveis. Estava convencido de que sua menina os escolhia baseada no critério de que o melhor era o que mais assustasse o papai. Vingança pela provocação dele na disputa pela televisão? Depois, entendeu que o problema era mesmo a velha crise de gerações que ele mesmo enfrentara com seus pais, muitos anos antes e passou a não implicar mais com eles. Quando isso aconteceu, também ela mudou o padrão, passando a namorar rapazes mais adequados aos seus conceitos de normalidade. Finalmente, acabou se casando com um bom rapaz, seu colega de faculdade, um ano e pouco atrás.
Um ligeiro rebuliço chamou sua atenção, quando um médico deixou o centro cirúrgico. Trazia ainda alguns respingos de sangue no jaleco e parecia bastante cansado. A família que se espalhava pelo ambiente formou um grupinho ansioso em torno dele e Gustavo com uma agilidade inesperada, em menos de um segundo estava parado ao seu lado:
- E então, doutor? – perguntou, aflito.
O médico olhou para ele, abriu um enorme sorriso e anunciou:
- É uma menina! Ambas passam muito bem e vocês poderão aguardá-las no quarto 312.